Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Linhas trocadas

Dizes que gostas do meu ombro, mas como pode ser assim? Ombro não é coisa de que se goste, não é coisa sequer que se lembre que exista.
Insistes. Falas da curva do meu ombro, da pele mais doce, do cheiro mais quente. Que o meu ombro é assim uma espécie de culminar de toda eu.
Encolho-os – os ombros, pois então – sem perceber muito bem o que hei-de responder.
Parece que te devia dar alguma coisa em troca, não ficar simplesmente a olhar nos teus olhos a tentar tirar todo o sentido do que acabaste de dizer.
Sorris e deixas-me estar.

Vim deixar-te ao comboio. Tocas-me levezinho no ombro, com o teu olhar em mim.
Sei que devia sorrir ou deixar cair alguma doçura, mas fico assim sem saber que me fazer.
Deixas-me com um beijo apertado, como são todos os teus. Não posso deixar de pensar que aquele teu olhar me estava a pedir qualquer coisa mais que o descartável Adeus, que me ouvi dizer.
Ainda te viraste para trás e sorriste. Não sei se sorri também.

Sei que quando já não via nem rasto do teu comboio, senti-me a sufocar com todas as palavras que não te disse, com todos os gestos que guardei, com tudo o que tinha para te dar e não dei.

Agora é tarde, já te foste sem dia para voltares a mim. No meu ombro ainda a ponta dos teus dedos a pairar. Sorrio enquanto o cheiro. Me cheiro. Levezinho, levezinho para não chorar.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

A última árvore

Vim aqui sentar-me sozinha à beira da piscina, a apanhar os últimos raios de sol do dia, a aproveitar agora que o Luis saiu, agora que ele foi ao Cercal tratar de qualquer coisa. Isto porque não quero que ele desconfie ao ver-me sentada aqui sozinha, a escrever, enquanto a minha família dorme a sesta e ele lá do alto, no escuro da sua casa de porta sempre aberta, me espia e percebe logo que escrevo sobre ele.

Por isso agora que não está, posso escrever a história que inventei para ele, que vou inventando, ao mesmo tempo que fujo de grandes conversas, de grandes intimidades, porque prefiro ser eu a inventar a história deste homem encardido pelo sol, o pó e a vida, e não correr o risco de descobrir-lhe qualquer banalidade na história daquelas mãos grandes, de dedos fortes e escuros.

Assim, invento a história do Luis, eu que até há bem poucas horas o tratava por Sr. Luis, mas depois ele fez-me aquele piscar de olho e meio sorriso quando chegaram aqui mais uns bifes a este turismo rural que ele criou no monte dos avós e foi aí que me fez perder o Sr. para sempre.

O Luis aqui anda, sozinho com o seu cão a que chama simplesmente Cão (na realidade não, mas eu não percebi ainda o nome do bicho e acho que fica bem ao meu Luis um cão chamado Cão), esse canzarrão que se encosta a nós a pedir mais festas, que se bamboleia a andar qual baiana no Carnaval, mas que «já não dura muito», como disse o Luis a sorrir um sorriso triste, porque o ano passado teve uma trombose com o calor alentejano e já tem bem mais de 10 anos.

Este cão Cão não pertence aqui, não é personagem que encaixe bem na história verdadeira do Luis, porque é um Bobtail, cinza e branco (mais cinza que branco, tal é o pó acumulado), não o tipo de guarda alentejano que esperamos encontrar num monte perdido no meio do nada, mas a 10 minutos da àgua salgada do mar.

Mas então o Luis da minha história é igual ao Luis que nos traz o sumo acabado de fazer para o pequeno-almoço, que me empresta o portátil para passear na Internet e me tratou sempre por Exma Sra nos emails que trocámos ao marcar a minha estadia.

É um homem alto, mas não muito alto, nem magro nem gordo, de cabelo grisalho num perfeito desalinho desde a manhã à noite, de camisolas de cores indefinidas e calças de ganga cinzentas de tantos anos sem lavar. É escuro, castanho, bronzeado, empoeirado, de sobrancelhas cerradas e sorriso aberto. De sorriso muito aberto e transparente. Quando sorri os olhos escuros sorriem também e conseguimos ver-lhe até ao fundo da alma. Bom, genuinamente bom.

O Luis é desde o princípio o meu tipo de gente. O tipo de gente que gosto de ter à minha volta e que me faz sorrir ao lembrar. Tipo de gente e não tipo de homem, atenção. Além de provavelmente ter idade para ser meu pai (a idade dos dois Luises, o real e o da história é perfeitamente indecifrável), não tem ponta de charme. Não sei explicar melhor que isto. É tão profundamente bom, que seria totalmente impossivel apaixonar-me por ele.

O Luis leva o dia inteiro abaixo e acima com o cão Cão e eu noto-lhe um sorriso quando passa diante daquela árvore ali ao fundo, fundada no caminho para a piscina, que nem é grande nem pequena, mas está coberta de folhas imensamente verdes, ao contrário das vizinhas que estão amarelas e secas como todas as outras neste Verão no Alentejo.

Profundamente só. É assim que o vejo quando espreito da minha-sua janela. Sai com o cão Cão para tratar de mais um cano partido, uma luz que não acende ou algum viajante que se aborrece de fazer este caminho de terra batida e areia laranja que nos traz ao silêncio do Monte de Cima.

A irmã trata dos quartos durante a manhã, camas, limpezas, lavagens e afins, intervalando cada apartamento com dois cigarros e uma boa dose de tosse agoirenta, enquanto mal-diz o raio das moscas.

O Luis perdeu-se de amores pelo meu filho. O meu menino conquistou-o ao primeiro olhar e ele não resistiu a puxá-lo e mostrar-lhe o cão Cão. Como se nos conhecêssemos há anos e não tivéssemos acabado de chegar, exaustos de uma viagem demorada e sem fim. Lá o levou e mostrou-lhe os quadros bizarros que enchem a parede da casa de jantar, cheios de cor e formas transfiguradas.

Na minha história, o meu Luis inventado chega agora do Cercal e vê-me aqui sozinha na piscina enquanto tenho a familia a dormir a sesta lá dentro e vem sentar-se ao meu lado. «Atão vossemecê escreve é?» O sotaque dos dois Luises, o real e o inventando, é igualmente cerrado, alentejano da primeira à ultima letra. E eu explico-lhe que sim, que gosto de escrever e por aí vamos.

Há cinco anos que Luis decidiu começar este negócio do turismo rural. «A terra já não dá nada, o chaparral ardeu todo vai pra mais de 6 anos e eu andava aqui sozinho com o cão Cão sem saber que fazer da nossa vida. Nem sempre foi assim, sabe?»

Não me deixou espaço para nenhuma pergunta, nem interrogação passageira. Levantou-se e foi-se.

A irmã Rosa, de voz queimada pelos cigarros, mãos a esfregar os joelhos, apareceu-me vinda lá de baixo, a alongar-se nas sombras, porque aqui o calor aperta mesmo no início do Verão. Aproximou-se, puxou um banco para perto de mim, com gestos e cara de macho empedernido e começou a desembaraçar o fio daquelas vidas. A despachar para não perder tempo entre um e outro cigarro, sem me dar resposta a perguntas, nem sequer perceber que eu ali estava.

O meu irmão Luis vivia a terra. Não é só que vivia da terra, mas é que ele vivia mesmo esta terra. Quando voltou de Lisboa com aquela Eva pela mão - essa figura etérea e saltitante, que mal assentava os pés no chão -, vinha de sorriso rasgado, vaidoso de mostrar-lhe toda esta terra que o avô lhe deu. Vi logo que dali não vinha boa coisa. O meu irmão sorria e ela não condizia. Ele puxava-a para trás e para diante, mostrando tudo, as casas, os campos, as flores e os bichos e ela pairava sobre tudo como se nada sentisse.

Em Lisboa a conversa era outra porque ela vivia no meio de artistas, teatros, pinturas e poemas cantados e o meu irmão Luis quedou-se de amores pelos seus cabelos negros pesados, pelos seus olhos transparentes e cheios de nada. Trouxe-a para cá prometendo uma vida cheia e redonda, uma casa inteirinha para ela pintar os seus quadros berrantes e uma árvore que plantaram os dois no fim do pomar.

A Eva foi desaparecendo nos cinco anos que passaram cá. A árvore crescia, o meu irmão vivia num mundo que imaginara para os dois e não via a mulher a fugir-lhe entre o pó da estrada. Exactamente cinco anos depois do desterro de Eva, vinha o meu irmão mais uma vez carregado de terra e canseira, pronto para abraçar a sua mulher perdida em pensamentos no alto do monte, e nada encontrou. Nem é ninguém. A questão é que ele não encontrou mesmo nada, porque já há muito que a Eva tinha deixado de ser, para apenas estar presente nas nossas vidas, como personagem de um quadro qualquer. Esfumou-se sem sabermos como nem quando. Desapareceu desaparecida de vez e para sempre. Foram dias, meses e anos de espera, de procura e de desesperança.

O meu irmão Luis ainda pensa que um dia vai encontrá-la sentada à beira da árvore que plantaram, aquela ali do fundo está a ver?, aquela mirradinha e encolhidinha que nunca se fez cheia e redonda, nem nunca vai fazer. Mas ele ainda procura pela mulher desaparecida debaixo daquela sombra. A ela e áquela vida cheia que desenhou para si nos cinco anos que Eva durou. Dizem por aí que afinal ela morreu, mas foi. Que vinha doente e por isso sempre aquele ar ausente e cinzento. Mas o meu irmão diz que não. Que apenas se fartou de estar aqui plantada e se foi.

Ainda não sei o que aconteceu. Sei sim que o meu irmão ainda sorri quando acorda. E isso chega a esta nossa vida desterrada.

Laranjas doces

A música tolda-me as vistas, Rui. Desliga-me lá essa cantoria, que essa algaraviada tolda-me as vistas, Rui.

Luísa, Luisinha como os pais lhe chamavam, já não sabia trabalhar se não fosse no mais fundo dos silêncios. Era vê-la toda debruçada sobre uma camisa, uma almofada ou um par de calças qualquer, a costurar, costurar, balançado-se como sempre fazia e costurava, costurava horas e horas a fim.

Desde pequena que a Luísa, Luisinha como todos antes lhe chamavam, gostava de pegar na agulha e coser, coser roupas para as bonecas, casaquinhos para os bebés das vizinhas e vestidos de chita para si.

Desde aquele bem-dito dia em que a Tia Elisa a sentara no colo, pequena, pequenina - uma catraia como costumava dizer -, as duas debaixo de uma das laranjeiras do quintal, e lhe mostrara diante dos olhos muito abertos, como um pedaço de pano verde, se transformava, em poucos segundos, numa nova saia para a pequena. Desde esse dia que a Luísa, Luisinha como lhe chamavam as vizinhas, não queria saber de outra coisa que não costurar.

E foi assim que Rui a conheceu. Debaixo das laranjeira das tias, o sol já a pôr-se e a pequena a baloiçar-se debaixo da árvore, debruçada sobre um pedaço de pano qualquer, numa das suas criações inexplicáveis. Ele deixou-se ficar assim, atrás do arbusto da entrada, a vê-la, os cabelos negros em fogo, a agulha que ia e vinha, vinha e ia, frenética, enquanto ela se balançava, não sossegando até acabar. Só quando deu o trabalho por terminado, estendendo-o diante dos olhos, sorrindo um sorriso feliz, qual criador olhando para a sua obra prima, só então Rui foi sentar-se, de mansinho, perto dela. Fizeram conversa nesse e noutro e outro dia, cresceram os dois namorando debaixo da laranjeira das tias, entre pedaços de pano, carretos de linhas e beijos roubados e foi aí mesmo, enquanto o sol se punha, que ele a levou para casar.

Só que hoje o Rui já se cansa de a ver balançar-se, sempre agarrada à agulha, ao dedal, aos panos sem fim. As crianças já cresceram, já têm as suas próprias crianças e agora já só está ele com a sua Luísa, Luisinha como sempre lhe chamou, e as suas linhas coloridas, dedais e tecidos infinitos.

Nem a sua música já o acompanha, porque ela já tem que fazer um esforço para se concentrar, os olhos já não são os mesmos, já lhe custa a costurar. Por isso já nem pode ouvir as suas óperas, os tenores e sopranos, porque ela grita-lhe sempre lá do fundo da sala, do seu cadeirão encostado à janela – Baixa-me essa música, Rui!, Essa música tolda-me as vistas, homem!

E ele levanta-se pesadamente, põe as óperas baixinho, baixinho, para se poder encostar na cadeira de verga, fechar os olhos e lembrar a sua Luísa, Luisinha como ainda lhe chama, debaixo de uma laranjeira, sentada na erva fresca a baloiçar-se, enquanto costura mais uma as suas extravagâncias.

É por isso que sorri, mesmo quando sabe que está sozinho em casa, que as crianças já nem aparecem e a sua Luísa está lá dentro, sozinha, curvada, a costurar…

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Carta de amor

Bati a porta do mundo e fugi da vida. Peguei-o, apertei-o bem contra o peito e corri. Corri, corri, corri até ao mais infinito de mim. Saltei montes e montanhas, voei sobre as mais largas planícies e os mais secos desertos. Os mares mais salgados e os rios mais profundos. Corri, corri sempre, apertando-o contra mim, em mim, doce, docemente para não o deixar cair.

Apareceram as tempestades, os mais fortes vendavais, chuva, granizo e até furacões, mas não me deixei abrandar. Corri, corri sempre, até ao fim do tempo, até ao fim do mundo. Não o deixei por um segundo, não o deixei sair do meu regaço, não o deixei sair de mim.

Então vi-te, longe, bem lá longe, no topo da montanha mais alta, do pico mais agreste, tolhido pelas tempestades.

Do fundo de mim encontrei o que ainda me restava e corri até ti. Veloz, veloz como o vento ou a àgua, ou o tempo, ou o mundo. Corri até ti. Suspirei por fim.

Desapertei-o do meu regaço, dos meus braços, do meu peito e coloquei-o bem devagarinho no teu colo. Com suaves cuidados e sem o mais ínfimo pudor.

E foi assim que to entreguei. Foi assim que te dei o meu Amor.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

HOT

Com a ponta dos teus lábios tocas-me, ao de leve, a curva da orelha. Arrepio. Dizes-me o que se segue. A tua mão que procura a minha, toca-a, segue por mim acima, demora-se no meu ombro e segura-me o cabelo. Arrepio.

A tua boca na minha nuca, no meu pescoço, a descer a linha da costas. Arrepio.

Voltas à minha orelha. Segredas-me o que vais fazer a seguir. Pernas a tremer. Respiração presa na ansia do que se segue. Viras-me para ti. Colas-me a ti, encaixas-me em ti. Arrepio...

As minhas mãos que levas até ti. Apertas-me em ti. A tua boca no canto da minha. A dizer-me o que se segue. Pegas-me. Sem cuidado, só com vontade. Nem sei sorrir, só me deixo seguir. As tuas pernas a puxarem-me para ti. Os teus braços fortes a fazerem-me deslizar. Por ti. Arrepio, arrepio, arrepio.

Sentes-me, sinto-te. Perguntas-me «Estás a sentir-me?», não respondo, as palavras já as perdi há muito, aceno apenas ao de leve com a cabeça. Apertas-me ainda mais.

Dizes-me o que queres agora. Arrepio, arrepio, arrepio, arrepio!

A bancada fria da cozinha, gela-me o corpo. Assim estou na medida perfeita para ti. Como me segredaste antes. Sinto-te agora a tremer, a respiração descompassada. De tão colados que estamos já nem sei se é o meu, se o teu coração que bate tão desconcertado.

Dizemos um ai e já não sei se fui eu, se tu.

Uma lágrima quente desliza devagarinho, leve leve, na minha pele. Não te preocupes. É um arrepio.

Histórias pedidas (umjeitomanso.blogspot.com): Leque perfumado

O pincel fininho, fininho viaja veloz entre as tintas espessas e as tabuínhas de madeira amarela. No leque apareciam flores, miosótis bem lilases, para se juntarem às libelinhas esverdeadas que pintara o ano passado na varanda sobre o mar. O pincel mergulhava determinado na água e Stela sorria a pensar que ainda há escassos minutos esse mesmo pincel fininho, fininho pintava as palpebras translúcidas desenhando com o pó a sombra do olhar.

Esperava mais um dos seus galãs, mais um dos muitos que lhe vinham enchendo o quarto e os anos que passavam rápido entre as temporadas Lisboa-Paris-Matosinhos. E Grasse. Essa terra perdida entre a montanha e o mar de Cannes, terra mãe dos mais finos perfumes e onde sempre se tentava a não voltar.

Sobre Grasse não escrevia, não comentava. Lá estava Guillaume, filho do marceneiro da vila, antigo criado da familia da mãe, antes de se mudarem para a Paris dos mil encantos. Era dez anos mais novo que Stela, totalmente inapropriado para a refinada senhora da sociedade em que se tornara, culta, vivida e leviana, mas que a levava a perder-se naqueles olhos castanhos e ensolarados.

Fora Guillaume quem lhe oferecera o leque, após a sua primeira visita a Grasse. Leque que ela agora enchia com bocadinhos da vida que levava, que queria sempre encher mais e mais para não lembrar a vida que não tinha em Grasse.

Stela cresceu a ouvir a ladaínha da mãe, qual terço continuamente rezado. Ela ali desterrada neste petit país de merde, onde não se passa rien, nem as festas que o pai de Stela prometera, nem os eruditos serões, nem os espectáculos, nem a Ópera, nem nada. Rien de rien! E ela ali, filha da mais pura aristocracia francesa, a perder os seus merveilleux anos de vida, na triste Lisbonne, na merde de Mattosinhos! La vie que lhe passava ao largo e ela a desfazer-se, vítima das vãs promessas. Nem a filha Stela podia lá ser Stella, era uma infime Estela, nome que lhe soava a criadagem e pequenez.

Stela crescera então a sonhar uma vida maior para si, a querer sempre mais e tudo o que não tinha. E de alguma forma ser lembrada para sempre, na sociedade, no amor, no mundo! Portugal não lhe chegava, Guillaume não lhe chegava. Queria a perfeição para si. Nada menos que isso seria aceitável. E conheceu muito, viajou muito, privou com poetas, proseiros e pintores. Músicos e políticos. Chegou a ser íntima de princesas e prima-donas. Mais íntima ainda dos respectivos.. Mas as promessas que a levavam à intimidade perfeita, desfaziam-se nos meandros da clandestinidade.

Na ânsia de viver uma vida cheia, só o vazio lhe ficou. Na ânsia de viver tudo e sempre mais, perdera os filhos que não teve, os quadros que não pintou, o amor que não amou.

Velha e enrugada, recostada no sofá, foi antes do último Ai que olhou para o leque amarelo das tantas vidas prometidas e percebeu que nada lhe ficara. Só as recordações do que não fora, do que nunca chegara a ser. E o cheiro da madeira perfumada de Grasse que a castigava a cada momento da sua velhice.

Hoje, quase 200 anos depois do dia em que Guillaume lhe deixara o leque no travesseiro, Estela sorriria ao saber que afinal ainda se conta a sua história. Que alguém que pega com gentileza no leque amarelo conta ainda a história de uma Stela grande de mais para a vida que viveu.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Carmim

Laurindinha morava na Rua das Flores, nº8, 5º direito e gostava bem de dizer a todos o nome da sua rua, o numero do prédio e da porta, numa cantilena seguida e que não calava. Rua das Flores, nº8, 5º dto, 2800 Almada, terra esta para onde os pais a trouxeram, vinda da aldeia que já nem lembrava, de seu nome Cunheira de Cima, sendo que nunca chegou a descobrir onde ficava a De Baixo.

A Laurindinha amarrava os cabelos castanhos e esguios com a fita dourada que a amiga Belinha lhe dera no dia em que a tinha deixado lá na aldeia, na sua casa cor de nada, cor de ontem, cor de alguma coisa que não sabia bem o que era, mas que todos juravam que um dia fora carmim. A primeira casa carmim da aldeia, que na altura a todos deixara de boca aberta, mas que com as chuvas de Dezembro e os suplícios de Agosto foi desmaiando folha a folha, até hoje ser desta cor que já ninguém sabe o que é.

Lá na aldeia todas eram Belinhas, Laurindinhas, Teresinhas e Clarinhas porque assim que nasciam lhes tinham que chamar qualquer coisa pequenina para distingui-las das mães e avós que tinham o nome igual. Mas no fim das contas, hoje em dia já ninguem sabia se se falava da Belinha mãe ou da Belinha filha. Da avó não seria, essa avó que pintou a casa daquele vermelho escuro, carmim como gostava de arredondar a boca a dizer sílaba a siliba, porque essa avó foi a única que não conseguiu um nome pequenininhoinho porque o seu já era indecifrável tal como era. A Avó Anette tinha chegado de França num dia de sol e calor que fazia transpirar até as paredes, envolta em plumas lilazes e tules esvoaçantes. Os perfeitos caracóis encarnados, envoltos numa fita de cetim dourada que escorregava pela nuca.

Todos os 53 e meio (tinha acabado de nascer o Janico da Sãozinha) habitantes desta aldeia perdida no meio do nada, de distancia igual para o Crato e o Sôr, se quedaram pasmados a ver aquela azáfama da chegada da franciú no bentley do sr. visconde. A jovem Anette, desceu firme e segura ajudada pelo sr.Antonio, motorista enfarpelado do sr.visconde e sorriu para a populaça.

Os dias passaram e mal se via a francesa pôr pé fora da casinha ajeitada entre a mercearia da D. Belarmina e o casa do padre Zé. Só a Ceição, alentejanita trigueira contratada pelo sr. Visconde para todo o serviço na casa da Madame, só a ela se via passar, dentro e fora, fora e dentro, numa azáfama sem fim de idas à mercearia, ao café, à igreja e sabe-se lá mais onde.

Até ao dia em que o sr. Visconde apareceu pela noite, só a D.Belarmina deu por ele e a Cunheira encheu-se de musica e risos estridentes. Essa noite repetiu-se semana sim, semana não, até que foi ficando mais espaçada e às tantas meses se passaram sem o Sr. Visconde dar as caras. Os suspiros da Madame começaram a ouvir-se pela aldeia inteira, noite e dia, dia e noite e ninguém nem nada a sossegava, nem os cafés da Ceição, nem os bolos da D. Laurinda, nem as mezinhas da D. Belarmina.

Só o padre Zé trouxe remédio santo, que afinal foi ele próprio e mais nenhum. Atreveu-se a entrar na casa da Madame, mesmo sabendo que não devia, que era casa do pecado, que a Sra Viscondessa quando soubesse não perdoaria e depois lá se iam a mesadas para a Igreja e as ajudas às festas de S.Francisco. Mas o padre Zé já há muito que espreitava Anette pelo canto do olho e via mais nela do que qualquer outro. Desde o dia em que a viu de combinação transparente a pintar a casa de vermelho escuro, carmim dizia ela anos depois, cheia de tinta nos braços nus brancos, nos cabelos enleados na fita dourada, nas lágrimas que lhe corriam nos olhos verdes claros.

Nesse dia ficou a vê-la a acabar o seu trabalho, a sua obra e quando já não restava mais nada para pintar, nem um recanto ou soleira, pegou-lhe na mão e deixou-a afogar-se no seu peito virgem de afecto.

A partir daí o padre Zé estava mais em casa da Madame do que na sua e não tardou em que aparecessem com a Belinha nos braços, a petite Isabelle como lhe chamava a mãe carinhosamente e a vida assim foi correndo enquanto o carmim da casa desaparecia com a calma dos dias que passavam.

A Belinha pediu à avó Anette a fita dourada com que sempre encarrapitava os seus cabelos. Era o que de mais precioso conhecia para dar à sua amiga que partia agora para essa terra desconhecida que diziam ser em cima do mar e que tinha medo que fizesse desaparecer  Laurindinha para sempre.

Essa fita tantas historias podia contar de Paris, da noite no Moulin Rouge em que o Sr Visconde levou a jovem Anette para a mesa, lhe contou da vida boa nesse pais que a menina nunca tinha ouvido falar, dos palácios, cavalos e festas, da viagem solitária por França e Espanha até chegar a essa casa cor de nada que é hoje mais uma entre as outras, mas que tanto teve para contar.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Discurso directo

«Os amigos são os irmãos escolhidos». Pelo menos assim se lê no cinzeiro que o meu sogro tem na mesa gigante que em-meia os sofás lá do monte. Que privilégio este, termos irmãos que escolhemos a nosso bel-prazer.

Neste momento, hoje, agora, somos quatro, mas já fomos cinco e até seis.

Estranha coisa esta. Eu que sempre fui mais de amizades com o sexo oposto, desde que era coisa pequena e ainda mais na idade adulta e agora olho para estas raparigas que são já mulheres, mães, cheias de si e vejo que são a presença (escolhida) mais duradoura na minha vida.

Sempre que nos encontramos, seja todos os dias ou uma vez por ano, começamos nesta estranheza própria de quem não sabe se alguma coisa mudou. Chegamos cheias de gentilezas e tento na língua, se-faz-favores e cedências pouco naturais. Mas dêem-nos trinta bons minutos e tudo muda.

Soltam-se os risos, as palavras e até as inconsequências. Voltamos a ter dezoito anos e contamos o difícil que é crescer, ser mulher, ser mãe, encontrarmos o nosso lugar e ainda assim não nos perdermos.

Minhas queridas amigas a quem tanto quero bem, com quem aprendo e a quem ensino, não se percam do meu caminho, não se esqueçam de chegar a mim.

Não precisamos dos abraços que nunca demos, das mãos que nunca segurámos, nem dos colos para chorar. Nunca fomos assim e não precisamos ser.

Somos escolhidas, eleitas, uma a uma nesta irmandade feita de mundo e do mais puro cristal.

Lençóis lavados

O cheiro a lavanda logo pela manhã, enquanto me estico nos lençóis de linho da minha avó. A janela já está aberta e dá licença ao sol para entrar e sacudir-me deste sono pegajoso. Arrasto-me pelos lençóis frescos até à beira da cama. Deixo-me ficar de olhos semi-abertos a ver o azul lá fora e ouvir os risos ao pequeno-almoço.
Sorrio um dos meus sorrisos de quando paro para pensar no meu mundo e me dou por feliz.

Ainda para mais quando sei que me esperas do outro lado do corredor e que posso chegar a ti, de cabelo no ar e olhos inchados, que mesmo assim me vais puxar para ti e deixar-me rebolar no teu peito enquanto me falas com a tua voz melada.

As nossas crianças hão-de saltar, dar pinotes, mostrar-me as bocas besuntadas de leite, as mãos escorregadias da manteiga das torradas, enquanto algum de nós se deixa apanhar na teia de uma história cantada.

Vou arrastar-me até à mesa, vais deixar-me um croissant ao mesmo tempo que me beijas o cabelo com a tua boca cheia de mel e as crianças correm para o meu colo, puxam-me, pedem mil coisas numa linguagem indecifrável e deixam-me ver os seus dentinhos de leite malandros.

E aqui estou eu, à beira dos lençóis de linho, a inspirar o ar fresco da manhã, a ouvir os risos lá dentro, a sorrir sozinha, levantando-me devagar, devagarinho, enquanto procuro os chinelos já gastos, a camisola dos fins-de-semana, abro a porta e deixo entrar o meu mundo.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Faça favor de entrar

Bateram-me à porta e recusaram-se a entrar. «Entre» disso eu lá do fundo de mim – Entre, que já aqui estou sozinha há muito tempo. Preciso de alguém que diga como ele um dia me disse «Que tens passarinho?», que me toque como ele fazia, sempre com a dúvida no ar, sempre mostrando que alguma coisa havia, que alguma coisa me queria, mas sem o poder desvendar.

Por isso eu disse «Entre», porque já me sentia sozinha há algum tempo, porque queria companhia, porque já não sabia viver assim e porque já não queria. Porque ao fim de tantos «Entre» nunca mais era ele, nunca mais ele me ria, me desenhava com o olhar, me apartava com um gesto, nem me tinha querido falar.

Por isso sempre que me batem à porta eu tenho dito pacientemente «Entre», mas nunca o fazem, nunca chegam sequer a pisar a soleira da porta, nem sequer a tocar devagarinho o tapete que tenho estendido há tanto tempo para quem quer entrar, nem o chá esquecido em cima da mesinha de mogno, nem o calor que guardo ali na lareira.

Por isso já me vou cansando de dizer «Entre», por isso já não o digo todas as vezes, nem tantas, nem quase nenhuma, porque já sei que não vai ser ele, nem ninguém sequer parecido, porque já ninguém me vai dizer «Que tens passarinho?», nem desvendar-me o olhar, nem pegar-me na mão mesmo sem eu saber que preciso mesmo que alguém o faça, nem despir-me de tudo sem eu perceber, nem olhar-me com aqueles olhos brilhantes quando eu estiver nua à sua frente, a tremer de frio e de tudo.

Porque ele já não vai bater à minha porta. Ou porque se cansou, ou porque não quer ou porque já não pode.

Tem outras portas a que bater, há alguém que tem sempre um «Entre» para ele, só para ele, um colo onde ele se possa sempre sentar e isso eu antes não sabia que tinha para dar.

Já tentei pôr um pé fora da minha porta, espreitar as coisas lá fora, deixar-me de falar do fundo de mim e soerguer-me até à superfície para ver se ele lá está. Para quando o encontrar dizer-lhe que agora estarei sempre à sua espera quando quiser entrar, que o meu colo está sempre pronto, que o chá não deixará de o esperar, que cada vez que bater à minha porta direi sempre Entra, entra e apressa-te porque preciso que me passes a mão pelo corpo, que me apartes com um gesto, que me dispas com o teu olhar, que me pegues no queixo enquanto eu estiver ao teu colo e me segredes baixinho «Que tens passarinho?»

domingo, 21 de agosto de 2011

Travessa das Acácias

Na janela da D. Laurinda via-se sempre a gata Clotilde, gorda, dengosa e bem repimpada, atenta a tudo o que se passava na Travessa. Lembro-me muito bem das tardes passadas no quintal da minha avó, dos banhos de mangueira e das caças às formigas e de ver sempre a Clotilde e sua respectiva Dona a mirarem-nos com ar de enfado.

A D. Laurinda já devia ter uns sessenta, sempre de carrapito e bata às florzinhas, às pintinhas, às risquinhas e outras inhas que se sucediam dia após dia, fizesse chuva ou sol. A minha avó cumprimentava-a sempre e ela atirava um «bom dia vizinha» com ar de quem não anda contente com a vida.

Naquelas duas semanas de Verão que sempre ficávamos na minha avó, era rara a noite em que eu não acordava com a choradeira da Clotilde. Das primeiras vezes foi desconcertante, fui acordar a minha avó e tudo, era capaz de jurar que estava um bebé a chorar no meio da Travessa. A minha avó lá me explicou que as gatas com o cio têm aquele miar pegajoso e arremelgado que me deixava às voltas na cama sem dormir.

Mas era preciso ter um azar! Não é que a Clotilde «ciava» sempre que eu lá dormia, ano após ano e, mais tarde comecei a reparar, sempre à mesma hora?

A Clotilde tinha um segredo. Não era bem a gata, verdade seja dita. Era a D. Laurinda. Ou melhor, a D. Laurinda e o Sr. Antunes lá da mercearia. Todos os dias quando a lua já ia alta e as estrelas piavam fininho, o Sr. Antunes deslizava para fora dos lençois da sua Sra, sempre ferrada com os quatro Valdispertes que a Doutora da farmácia lhe tinha dito que eram remédio santo para as noites menopausicas - e lá ia ele a passo desacelerado até à porta da D. Laurinda.

A porta abria-se e a Clotilde era posta cá fora. Assim mesmo, sem dó nem piedade, corrida para fora da sua almofada folhada a cetim, do seu sono de beleza e posta a ressacar à porta de casa, reduzida à sua condição de gata, de mero animal, e ali ficava a desunhar-se numa miadeira, chiadeira, remelgueira, até a sessão dos dois acabar.

Sessão? Sim, sessão. A D.Laurinda vestia os seus vestidos esplendorosos de espanhola, de pintas negras, bolas brancas, folhos rendados, tudo vermelho, vermelhão como cantava a outra, no gira-discos tocava uma sevilhanada que guardara dos seus tempos de recepcionista em Madrid - vai para mais de 30 anos, mas com uns elasticos e uns remendos tudo aquilo estava como novo, ou quase -  e dançava para o sr. Antunes, noite dentro. A gata gemia-se e o Sr. Antunes também. Gostava de ver o brilho daqueles vestidos, os pés da Laurinda a bateram ritmados, enfurecidos no chão de tijoleira, o cabelo prateado a roçar-lhe a cintura e o olhar transeado da vizinha.

Só quando acabava o LP a porta se abria para Clotilde entrar. Com o seu ar de desdem passava pelo Antunes sem lhe dirigir um miado sequer, enquanto ele beijava solenemente a mão da Laurinda em jeito de «até amanhã»..

Como tudo isto começou, não me perguntem, que eu não sei. Sei que agora são os meus filhos ainda tão pequenos que se queixam que cada vez que dormem na casa da bisa, na Travessa das Acácias, há uma choradeira a noite toda. Eu sorrio. Bem sei que a Clotilde nunca se conformorá. Mas ainda no outro dia entrei na mercearia do Sr. Antunes e tenho a certeza que ouvi uma sevilhanada a tocar baixinho. E o velho cantarolava a sorrir. 

sábado, 20 de agosto de 2011

Letra a letra

Ana gemia mais uma vez com o pente a correr veloz nos seus cabelos prateados. Chegava o Verão e era sempre isto. Os mergulhos gelados, mil por dia, a quentura do areal infinito de Tróia e as sestas salgadas deixavam-na sempre com o cabelo naquele rebuliço e cor malfadada. Fazia-lhe confusão que o cabelo louro se transformasse em prata, que de liso se encaracolasse e deixasse nós infidáveis. Gostava mesmo era do tom escuro da sua pele de menina catraia, escura como a do seu irmão, esse irmão que ela mal conhecia, que ia e vinha como a maré, deixando a família num desassossego.

Então a mãe passava mais uma vez o pente persistente e imponderado naqueles cabelos que já nada tinham das tranças louras do colégio e suspirava, mais um suspiro, mais um suspiro profundo, já está a pensar outra vez no Manel, já está outra vez em cuidados, ele que ainda o mês passado apareceu cá em casa, desta vez ainda nem faz tanto tempo assim mãe, ele ainda agora aqui esteve mãe. “Está calada miúda”.

E lá vem outra vez o pente, sem medos nem arrepios, arrancando milhentos fios prateados da Ana, da Aninhas das tranças louras como lhe chama o avô Tó, enquanto lhe dá mais um gelado na mercearia do Luis e responde às vizinhas que do Outro não sabe nada. O Outro dito com uma distancia de quem ja não quer saber. E a Ana, a Aninhas, sabe bem que o Outro é o irmão fugidio, o irmão que não sossega, que se tenta encontrar num terra perdida qualquer, numa montanha cheia de gelo, ou nas letras de um livro esquecido.

A miúda espreita muitas vezes atrás da porta quando já a julgam a dormir. Ouve a mãe para o pai “Ele já em miúdo era assim, fugia-nos sempre pr’á rua, ou porque chovia, ou porque fazia sol, ou porque a lua estava redonda ou porque entrava num desassossego impossível de conter. Mas depois era aquele menino de ouro, sempre o melhor da escola, as vizinhas encantadas com aquele sorriso moreno, aquele sorriso que me enchia de amor. Aquele sorriso bem aberto quando te via chegar com um livro novo na mão. O problema foram os livros António, os livros é que lhe encheram a cabeça e o peito de coisas que não é suposto um menino ter dentro dele. Fizeram-no sonhar e querer sempre mais António. Nem quando as miúdas da vizinha lhe piscavam o olho e subiam as saias, nem assim ele largava os livros. E foi quando ele começou a desaparecer-me, a chegar cada vez mais tarde, a não lhe pôr a vista em cima um e dois dias seguidos, foi aí que apareceu esta miúda dentro de mim, esta miúda de tranças louras como mais ninguém na família tem.

Esta miúda que me enche de amor e ternura quando se agarra a mim, que é a melhor do colégio, que faz um sorriso do tamanho do mundo quando chegas com mais um livro, que ja nem quer saber quando os rapazes lhe puxam as tranças, que ja se perde a olhar o mar, que me foge sempre que a lua brilha mais alto, esta miúda que eu sei que me vai desaparecer também e depois eu é que fico aqui sozinha Antonio, mesmo perdida e infinitamente sozinha, porque tu ficas fechado nesses teus livros que te fazem desaparecer e eu aqui fico sozinha à janela a contar os instantes que faltam para ver os meus meninos outra vez, sem saber quando, esses meus meninos que os teus livros me vão roubando , letra a letra, história a história, até eu já não lhes chegar.”

Lost & Found

Se me vires assim de olhar esfumado e sorriso desencontrado, não te preocupes. Sou só eu perdida nos meus mundos, à espera do tanto que há para vir, com vontade de sempre mais, com os arrepios nas pontas dos dedos e a intensidade à flor da pele. Mesmo como eu gosto.

Procuro em linhas desenhadas e em palavras surripiadas, letra a letra, das páginas que me enchem os dias, o tudo que ainda hei-de ser, o tanto que já sei que sou.

Pões-me a mão no ombro, tentas chegar-te a mim, mas neste momento não me fazes falta, não te preciso aqui, não sei que te dizer. Talvez porque faças parte de mim e isso me chegue. Por agora chega.

Mas depois quero ganhar mundo, quero bater à porta da vida, não quero sequer pedir licença para entrar, quero deixar-me levar, quero que me levem, leve, leve, sem o peso de mim, para descobrir o que por aí há, para vir a sentir mais do que mais, mais do que os outros, mais do que tenho agora aqui.

Não te preocupes se eu ficar horas à janela, ou à beira de um muro sobre o mar ou sequer num quarto escuro. Não te preocupes porque não sou eu que lá estou, mas a vontade do que serei. Estou a viajar, estou a sonhar. Estou a desenhar em mim as estradas que vou correr, as vidas que vou viver.

Deixa-me ficar assim, então, que eu volto já, prometo que não demoro, não ficarei por regressar. Espera por mim, mesmo que quem volte já não seja eu, mas um eu um bocadinho maior, um bocadinho mais cheio, um bocadinho mais perdido das histórias de mim. Mas eu volto. Eu volto.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Dias assim

Olho-me ao espelho enquanto desfaço a barba, esta barba de fim de semana que cresce negra e persistente e imagino já o que vai ser deste dia igual a todos.

Enquanto espreito o Toni a coçar a barriga por cima da roupa sem cor, pés em cima da pilha dos pneus velhos, há-de chegar mais um que refila com isto e mais aquilo e olha para o relógio como se ele fosse desaparecer a qualquer instante ou os minutos se arrastassem mais demorados, só porque assim o quer.

Ou então um daqueles que chega com todo o tempo do mundo, relógio nem sabe o que é, mata minutos a falar das jantes em liga leve do ultimo modelo da marca mais potente – epá, aquilo sim, aquilo é que é um carro -, que faz 10 segundos dos 0 aos 100, das motas 500 que agora já não são o que eram, ou dos golos do Real Madrid que já nem sabe quantos foram porque so grades de minis foram para aí umas 15. No mínimo! Já para não falar das 5 imperiais que essas sim foram de pénalti. Olaré! Sempre a dar-lhe!

Com sorte aperece-nos hoje na oficina uma daquelas jeitosas empoleiradas nuns saltos altos demais, que nos sorri a cada sílaba, encolhe os ombros quando falamos do óleo ou da pressão nos pneus e deixa cair as longas pestanas pintadas de negro enquanto oiço o zumbido do meu coração, qual martelo fleumático, com vontade de provar outra que não a minha velha Lurdes, mas que vou ajeitando devagarinho para não me perder nas contas.

Quem sabe se não é hoje que voltam a aparecer aqueles dois, sem pressa nem perguntas, nem sorrisos nem conversas, que querem apenas estar em sossego encostados ao muro da entrada, que nos dizem para demorar o tempo que quisermos a remendar o pneu furado, que nem estão à vista quando já acabámos o serviço e que eu espreito da janela do escritório fazendo-me lembrar tempos já passados.

Parece que é a primeira vez que se tocam assim, que ele a puxa contra o corpo, de mansinho, que ela deixa cair a cabeça no ombro dele, carregada de doçura e vejo as mãos de um procurarem as do outro. Os olhos não se cruzam, mas os sorrisos sim.

Deixam-se ficar assim e vendo-os, parece que também eu sinto o tempo parar.

Não vi como se despediram, mas adivinho um abraço apertado, uma vontade de mais. Pode ser que hoje, como ontem, me pareça que são eles que lá estão no fim da rua, escondidos na chuva, de corpos embaciados e desejos controlados.

Pode ser que hoje parem aqui outra vez, me mostrem um bocadinho mais do que são e eu possa encher mais algumas paginas desta vida em branco que vou carregando comigo.

Proibidos somos

Ainda tenho o teu cheiro em mim. E que bom que é. Que bom que é sentir-te mesmo quando não estás. Mesmo quando estou aqui já com um nó cá dentro, só porque não sei quando te vou voltar a ter nos meus braços.

Abriste-me a porta do mundo, mostraste-me o que é a vida. Fizeste-me querer mudar, procurar cá dentro tudo o que está perdido, trazê-lo para a beira de mim, pegar-te na mão e entregar-te tudo o que sou. De mão beijada, porque o faço enquanto dou um beijo na palma da tua mão.

Vais-me desfolhando qual malmequer desencontrado dos seus, e vais-me mostrando afinal quem sou. E isso traz-me para mais junto de ti, para bem perto de ti. Queria-te aqui agora. Queria pegar o teu queixo na ponta dos meus dedos e olhar bem fundo nos teus olhos – como nunca me deixas – e dizer-te isto assim, assim a perceberes a força e a plenitude de cada palavra. Conseguiste o que mais ninguém conseguiu. Conseguiste tudo de mim. Tens tudo de mim.

Tenho ainda o teu cheiro em mim, os teus beijos em mim, as tuas mãos em mim, a tua vontade em mim, de mim, para mim, o toque da tua boca em mim, em mim toda, tua toda de uma vez, de todas as vezes, as vezes que quiseres.

Não te assustes, não tenhas medo da imensidão destas palavras, só eu as sei entender como elas são realmente, o que elas valem mesmo, o quanto vão ao fundo de mim. Não te preocupes. Nada mudou e tudo mudou. Continuo a recusar o mundo dos impossíveis e assim é mais fácil continuar a sentir-te como te sinto. Como nos sinto.

Tens-me agora na tua mão. Mas não faças de mim o que quiseres. Faz de mim o que eu quero, o que eu sinto, o que eu escrevo. Deixa-me nesta pureza de emoções, neste sem fim de transparência e infinitude. Infinitude de nós. Mais do que mais, mais do que era, mais do que foi, mais do que devia. Muito mais do que devia. Cada vez mais do que devia. Mas é e é assim.

Não te quero perder nunca, não me quero desencontrar de ti. Quero a vida assim, contigo bem perto, o teu abraço sempre perfeito, a tua vontade de mim. A minha vontade de ti. O nosso mundo só nosso. O nosso mundo sem principio, nem meio, nem fim.

Albertino Curto

Chegou Albertino Curto, Curto do lado minhoto dos bigodes do pai e curto de dimensao, graças às pernas de alicate que nunca cresceram muito, nem lhe permitiram aspirar a grandes voos. Albertino Curto, pequeno de nome e de comprimento, sempre foi grande em fanfarronice e ginga nas palavras. As miúdas enrolava-as como aos cigarros, rapidinho e direitinho, sem hipótese de falhar. Aos rapazes e gabarolas dava-lhes uma volta de três em pipa, com letras que nem percebiam, palavras que aspirava antes de as soltar, passando por erudito ou gingão lá à beira da ponte do Lima, onde tantos o conheceram e viram a não crescer.

O pai e a avó Cremilde agoiravam-lhe grande futuro; futuro esse que foi diminuindo à medida que não o viam crescer. Foi assim que o Albertino Curto, que seria o grande da família, passou de doutorado falador a engraxador de sapatos quando aos 18 ainda perdia mais tempo com os cigarros do que com a vinha. A avó juntou o pouco que tinha, investiu no futuro negócio da família e despejou a pesada caixa de madeira para o colo do Albertino que se sentiu mais Curto do que nunca.

Albertino encheu-se de brios. Pegou na pesada herança em vida que a avó lhe atribuíra e disse alto e bom som que ia fazer-se a estrada, que não estava para esta desconsideração pelo seu estatuto de bem posto e bem falante pimpão. Arrumou-se, mais a sua caixa, na camioneta do velho Coronel Leopoldo, que nunca ninguém descobriu, nem sequer desconfiou, onde ganhou as divisas e pediu-lhe «siga para a cidade, aquela maior de todas onde as luzes brilham mais altas e todos são grandes em tamanho e nome». O coronel encolheu os ombros e não ligou a tanta falta de tino, era a sua viagem mensal a Lisboa e toda a vila o sabia.

Foi assim que Albertino, hoje, tantos 50 anos depois, se vê a chegar mais um dia ao centro comercial, xopingue como ouve as madames dizerem pelos corredores enquanto gritam com os miúdos que cada ano fazem mais barulho e gritam mais alto que o próprio Curto, nome que lhe ficou para sempre desde que chegara a cidade maior. Levara porrada de tantos e todos, até se diminuir à sua condição de baixeza e portar-se de acordo, mas sempre com um Albertino grande de mais dentro dele que nunca o deixou voltar ao Minho e assumir o fracasso da sua desventura.

De há uns anos para cá todos os dias vê passar uma madame pesadona, de pernas e mãos largas, camisa branca aprumada e sapatinho de mocassin engraxado. Nestes tempos em que ninguém olha sequer para os sapatos para ver a vergonha em que se passeiam, foram aqueles sapatinhos rebrilhantes que começaram a prender-lhe a atenção. Os olhos daquela matrona pesadona levavam-no de volta aos tempos de grandeza, encostado à ponte de pedra, enrolando o tabaco entre os dedos, enquanto enrolava também a Rosinha das tranças pretas com quem se perdeu uma e outra vez atrás das arvores da quinta grande onde a moreninha trabalhava com os pais. Mas não devia ser esta. Ela ate já o olhara nas rugas e na cara e não o reconheceu. Se fosse ela lembrar-se-ia dos sorrisos com que se desfazia à sombra dos verbos bem falantes do grande Albertino Curto. Impossível esquecer.

Então via-se reflectido na montra em frente. Via um velho pequeno e seco, enfiado numa roupa demasiado coçada para ser ainda cinzenta, de escova e lata na mão, sentado na herança da avó. Não podia deixar de sorrir um sorriso triste e pensar para si «Eis Albertino Curto, parco em tamanho, mas sobejante em sonho e em mundo».

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Princípio

As minhas palavras começam com um princípio e seguem a correr até um fim. Nem sei mesmo se terão um meio pelo meio. As minhas palavras e as minhas vidas, tantas vidas, vidas cheias de tanto, boas, muito boas, quase todas muito boas, outras nem tanto assim, a melhor de todas esta que vivo agora, com os meus filhos que são a parte maior de mim.

Mas a verdade é que me sento com um principio na cabeça e deixo-o seguir veloz até a um fim que só descubro quando chego... ao fim. São assim as minhas historias, escritas e vividas, que só descubro quando as acabo e as miro do alto de mim.

Não sei o meio, não imagino o fim, nem onde, nem quando, nem como acontecerá. Deixo tudo seguir o seu curso, veloz, ansiando por descobrir em que tudo isto vai dar, afinal o que vai ser das minhas historias e das minhas vidas, sem saber sequer quando acaba uma para começar outra. Não gosto de historias que se cruzam, nem palavras que se baralham. Preciso de tudo assim, corrido, com um principio que eu começo, com um meio que desconheço, com um fim por que anseio.

Cheguei a um fim destas palavras, mas sei-me ainda no principio de mim.

Arrábida

Sentavas-te aqui à minha beira e fazias-me sonhar. Com os mundos que viste, as horas que contaste, as vidas que perdeste e em que nasceste. As tuas melhores histórias eram as que inventavas só para mim. E eu ficava sem saber se eram minhas ou tuas, se as viveste ou se as desenhaste para mim.

Via-te chegar no teu carro cor da lua nas noites de Verão, o bairro todo a encher para te ver passar, novidade única dos dias mornos encaixados na Arrábida e já preparava o meu banquinho de verga ao lado do cadeirão do Avô Velhote. A chegada do primo Óscar, para mim primo porque a minha mãe desde pequena assim o nomeou, para os restantes O Senhor Engenheiro, quebrava a facilidade do dia-a-dia naquele bairro perdido entre a serra e o mar, guiado pelo toque da hora da saída que a fábrica gritava lá em baixo e fazia-nos esquecer o pó que nos enchia a roupa e as vidas.

A tua melhor historia contava como um dia me tinhas visto espreitar-te da janela da casa dos meus pais, numa aldeia longe, quando num Verão decidiste fazer-te à vida e perder-te do ritmo compassado dos dias daqui. Mas eu sei que não era eu quem te espreitava porque eu nunca saí daqui, porque quando tu eras menino ainda nem minha mãe menina era e quando torces esse teu bigode côr do teu carro, eu vejo que não é para mim que estás a olhar mas para uma gaiata qualquer que perdeste no princípio das tuas lembranças.

Não te conhecemos mulher, filhos ou amigos. Aparecias sempre sozinho. A mãe diz que primeiro chegavas na Carreira que chegava de mercado e depois chegavas de mota e depois no carro velho que compraste ao teu primeiro patrão e depois de vinte carros depois adoptaste este comprido prateado que brilha como a lua no alto da serra nas noites quentes e que me faz corar e escovar o cabelo à pressa porque o primo Óscar acabou de chegar.

Tenho notado que te é cada vez mais difícil subir os degraus da casa da avó Matilde, a tua irmã que já não te conhece, que perdeu o sentido de si e de tudo, que antes ouvia com desdém as tuas historias na hora do calor, que dizia que metade era mentira e outra metade era inventada, essa avó que já não sabe dizer o meu nome e manda-me calar sempre que pergunto quando voltarás.

Bem sei que ganhaste nova vida na cidade, essa Lisboa que só sei de ouvi rfalar, e que custa voltar ao sitio onde começámos e onde não conseguiste sossegar. Chegaste aos dezasseis, fizeste-te à estrada e deixaste o caminho levar-te. Depois do primeiro Verão a caiar as casas do Cercal, seguiste para Espanha e conheceste aquela que te fez crescer. A Cármen de olhos rasgados e pele clara, tomou-te pela mão e mostrou-te o mundo. Viajaram de comboio pela Europa, cruzaram o Mediterrâneo nos grandes navios do pai dela, desaguaram no fim da novidade, no fim da surpresa, no fim do encantamento e Cármen fez-te desaparecer.

Mas vinhas carregado de histórias e de mundo e a Lisboa do antigamente recebeu-te de braços abertos como se te esperasse para sempre. E voltaste a este bairro azul, no encaixe que a fábrica rasgou na serra, 10 anos depois, 10 anos que foram todos os anos da tua vida, que já vai longa, já vai esperta, já vai contada em todos os Verões em que voltas para sentares o meu pai ao teu lado, agora o meu pai mais eu, e depois junta-se o Toni lá da vizinha, a Luisinha lá da ponta e quem mais por aqui passa e se queda a ouvir as tuas histórias para mim, que falam de terras perdidas, amores desencontrados e vidas felizes. E de como o mundo é aquilo que dele vivermos.

E eu já decidi, hoje peço-te para me levares sentada ao teu lado no carro cor da lua de Verão, pores a tua mão na minha e para me ires contando devagarinho as tuas histórias vividas inventadas até chegarmos às luzes encantadas da cidade grande.

Aliança em Flor

Voavas de dentro de mim e não te conseguia mais apanhar. Sentavas-te na beira de uma janela qualquer e deixava de ouvir-te. Sentia-te perto mas já não sabia onde te agarrar.

Nos véus que deixavas cair, um a um de mansinho, via o que foste e o que voltarás a ser. Via-te toda, toda tu toda, como não te querias mostrar. Olhava-te forrada no sono, aninhada em ti, enleada nos sonhos que te cobriam até aos pés e não queria mais acordar.

Perdi-me de ti na primeira vez que te entregaste a mim. Nessa derradeira primeira vez, como todas o são, em que te quebraste por inteiro para mim, só para mim, e eu fiquei sem saber como te apertar. Embalei-me nos teus gemidos e súplicas, nos teus desejos e calores dormentes, nas tuas palavras escorregadias e tremidas. Levaste-me pela mão e eu fui.

A curva dos teus sentidos não era mais do que um reflexo de mim e do que acabáramos de ser. A estrada das tuas mãos levava-me até ao fim de mim, ao principio de nós. A tua pele no meu cheiro, o teu seio na minha boca, o teu sentido de mim soltaram-se dentro do nosso fundo e fizeram-te voar até à lua mais alta no céu mais claro do mundo mais infinito.

Quebrámos os dois e encontrámo-nos de novo. Uma e outra vez como em todas que desejámos. Sempre no principio de ti e no fim de mim. E quando me acabavas e entontecido não fazia mais do que apenas ser, abrias as tuas asas de mil sons e voavas para longe de mim, perdida num canto onde não te conseguia ver.

Agora pedes-me mais e eu não tenho mais nada para dar. Na transparência do que te digo - digo-te, conto-te, provoco-te, deixo-te, quebro-te -, mostro-te que de mim ja tens tudo, já nada mais tenho para te entregar. Brotas de novo em mim, boca com boca, peito com pele, mão no meu canto e entregas o laço com que me pedes para te prender de dentro de mim, para fora de nós, do início do que fui e do que sou.

Agora sei-te sempre aqui, agora já não queres voar. Não desapareces e não te desencontro. Nós dois somos um.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Marias

Era uma vez, duas ou três, alguém que um dia encontrou outro alguém. Encontraram-se, falaram-se, tocaram-se, beijaram-se, juntaram-se, amaram-se e morreram-se. Morreram-se? Sim, morreram-se. Deixamos de ser quem somos, não é?

Ora bem, então este alguém que até pode ser uma Maria como tantas outras Marias, via-se e revia-se na calçada pela tarde, cheia de brios e cores garridas, depois de largar o trabalho na mercearia da esquina. Mas quem a via com atenção, reparava em muito mais. O olhar saltitante, a mão no cabelo, o nariz no ar. A esta Maria como tantas outras Marias, não lhe chegava o seu amor lá em casa, sentado no sofa, com a mini na mão, os pés nos chinelos esfiapados e o palavrão no canto da boca.

Esta Maria, como tantas as outras aliás, crescera a ouvir as histórias dos principes encantados, das noites de paixão sem fim, das vontades de luares intermináveis e das palavras quentes ao por do sol. E portanto lá vai ela, uma e outra e todas as vezes, de nariz no ar e madeixa preta nos olhos, sorriso aberto e cantarolar perdido.

Passa em frente ao escritório do Doutor, desta como doutras vezes, suspira ao ve-lo novamente na ombreira da porta azul, mão no bolso e quentura no olhar, assobio rapido e palavra sussurrada quando a vê passar.
«Anda Maria..» e um arrepio sobe-se-lhe pela espinha acima e pelas pernas abaixo, treme-lhe a voz desta como das outras vezes, prende-se-lhe a desenvoltura do olhar e dá por si mais uma vez a corar «Oh Doutor....». E tropeça no passo do salto ja gasto, pensa que corre para não olhar, para não querer, para não deixar, enquanto os pés se lhe prendem debaixo do suspiro do Doutor.

Desta como das outras vezes, grita dentro de si, corre Maria corre mulher, corre que ainda o coração te fica aqui, corre que ainda vais para ele, corre que ainda te perdes de vez naquele olhar, corre que a vontade ainda te leva a melhor, que ele ainda te apanha mulher, que ainda te prende, que ainda te leva para cima, que ainda faz de ti quem nunca foste, que ainda te enche com essas coisas que só há nos livros, que ainda te faz acreditar que afinal há mais, que a vida não é morrermo-nos sentadas ao lado de algum alguém, que tu Maria mulher podes virar princesa mulher e depois quem é que te leva de volta ao sofá encardido, aos desportivos espalhados pelo chão, ao palavrão fácil quando chegas assim esbaforida a casa, de peito acelerado e mãos a gemer...?

Corre Maria, corre que essa vida não é para ti, as princesas só as há nos livros e o por-do-sol, esse nunca aqueceu ninguem.

Entre nós havia um tu e mais eu

Anda cá, chega-te a mim, toca a curva dos meus joelhos - gastos, velhos, secos - com a ponta gelada dos teus dedos, a frieza da tua pele, o enrugado do teu toque.

Senta-te aqui, vá, diz-me coisas doces ao ouvido, baixinho, devagarinho, assim como quando ainda te conhecia, como quando ainda não te via nesse lento lamuriar.

Cheira-me a curva do pescoço enquanto te deslizas em mim, te escorregas em mim, te desfazes em mim e me deixas cada vez mais tua.

Pegas-me na mão. Nem sinto a tua. Tão gelado estás. Que é feito de ti, meu querido, meu amor, minha terna tortura que por tantos anos me fizeste perder em ti? Onde andas com esse olhar vazio, por onde te escondes nesse sorriso sem vontade, nestes teus gestos enlutados?

Perdeste-te de mim, perdeste-te de nós e agora que vai ser de mim? E agora que vai ser deste arrepio que sufoca, desta vontade de ti que não acaba nunca..?

Entre nós havia um tu e mais eu. Agora há o vazio, a sombra do que era, o escuro do teu olhar.

Entre nós já fomos um, já fomos o que já não somos e eu perco-me aqui em esperanças de te reencontrar.
Anda cá, chega-te a mim, deixa-me procurar-te uma e outra vez nos angulos do teu corpo, no fundo da tua sombra, nos suspiros do teu respirar.

Entre nós já houve um nós. Agora, sou só eu.

Fechado para obras

Encerrei parte de mim assim que a vi subir aquela rua com aquele meio sorriso e aquele decote azul naquele passo descompassado. Vinha de lá para cá, de cá para lá, cheia de si e de rua, cheia de risos lá dentro e meios sorrisos à mostra. Olhava-a meio escondido da janela do meu quarto e adivinhava tudo o que ia perdido nos contornos divididos pelo azul de um vestido demasiado apertado.

Com o peito arfando nas rugas de nylon, as longas pernas queimadas pelo sol de S. João encarrapitadas no alto de uns sapatos altos de mais, encarnados de mais, feios de mais, velhos de mais, a bolsa preta apertada contra as curvas de uma barriga que já fora lisa e uns olhos gulosos de quem anseia por tudo, ela subia a rua com vontade de mim.

Mas eu olhava-a atrás do cortinado já gasto, via-a assim e fechava aquele recanto de mim em que guardava a alegria de todos os encontros e vindas dela.

Percebi que hoje não seria o seu primeiro, que hoje já tinha tido um outro qualquer, se calhar aquele da Paiva Couceiro que lhe trapisca o olho sempre que a ver passar, que assobia quando vê aquelas pernas que me apertam nos momentos mais temidos, quando sente o cheiro do seu perfume a sexo oferecido. E ela deixa cair o seu sorriso de quando pensa que não a estou a ver.

Mas hoje sei que não cumpre o que me diz no calor dos meus lençóis, que não vou ser a sua primeira cama do dia, que o que eu lhe pago ou não pago não interessa, porque comigo fecha os olhos e pode apenas ficar, a minha respiração à procura da sua, a minha pele a pedir a dela, o corpo dela enleado no meu enquanto treme em pesadelos sem fim e me aperta entre si com toda a força da vida que a esvazia. Para depois acordar a soluçar.

Vejo-a subir a rua naquele passo gingado, naquela dança só sua e sei que hoje esteve com outro alguém, alguém que lhe encheu aquela mala preta que aperta com medo que lhe fujam as notas de 100, alguém com quem não consegue adormecer, alguém que não a embala ao acordar, mas que a deixa sem ter que pensar na manhã seguinte, nas contas sem fim, na mãe que ja não sabe quem é ou no vestido que é preciso remendar.

Melhor que seja isso e que não tenha sido alguém que ela encontrou e que a faz finalmente sossegar, alguém para quem corre antes de todos os outros alguens, que a enche de rios rosa e amores sem fim, alguém que antes era eu e agora já não sou.