Parte I
As ruas cheias de gente
A porta mal fechada
O vento que sopra quente
O brilho do céu na estrada
Segue só e em si abraçada
Os olhos dos outros prendem-na num fio
No passo demorado e na vontade de nada
Enchem-na de silêncio e arrepio
É mais uma no meio de tantos
à espera de ser encontrada
Agora a perder-se em prantos
Leonor vai pela pela estrada
Parte II
Pouco formosa e nada segura, Leonor vai pela calçada. Procura ansiosa o número 23, que tão bem conhece. Desvia o olhar do porteiro. Não tarda estará enrolada no sofá encarnado, no seu cais, e deixará de sentir os olhares de todos os outros em si. No seu corpo, na sua pele. A invadirem os seus olhos, a devassarem o que há bem dentro de si.
Agora recostada, de pés descalços enquanto ele a olha do canto da sala. Conta-lhe mais uma vez do que lhe custa andar no meio de outros, de outros que não conhece, nem quer conhecer. Uma coisa inexplicável, bem sabe, mas é o que a arrepia ao passear no meio de toda aquela indiferença que ali se une, nos passeios, nas estradas, cheios de gente que corre, de olhar vazio e respiração apertada. A tocarem-se sem quererem. A tocarem-na, a invadirem-na. Ainda se alguém lhe perguntasse o nome, segurasse pela mão enquanto corriam juntos para um destino qualquer, ainda se tivesse alguém que a quisesse por perto, a quem ela pudesse contar das suas coisas e das suas ânsias... Mas não. Todos correm e nem a vêm. Olham-na, enterram a sua frieza nela, mas não a vêm.
Se não fosse aqui este nosso tempo, esta nossa calma, não sei que seria de mim, diz-lhe ela. Ele nada. Aqui ao menos posso falar de tudo e sinto que esses teus olhos não estão vazios e me ouvem até ao fundo. Aqui consigo respirar como é suposto, conto-te disto que me sucede e sei que tu entendes. Pelo menos ouves-me, sem correr. Sem correres. Aqui já consigo demorar o passo em que levo a minha vida e sei até que me tocarás a mão sempre que eu estiver a precisar.
Ele olha para o relógio. «Leonor, o nosso tempo de hoje acabou. Sugiro que passes a tomar o ansiolítico também ao almoço. Podes marcar hora para a semana ali junto da enfermeira. Por hoje é tudo».
Parte III
No tempo que passas preocupada com o hoje, já o podias ter apanhado. Entre as mãos. Apertavas, cheiravas, tornavas teu. Nosso. De mansinho encostavas-me ao teu peito e deixavas-me estar.
Os ponteiros correm e se tu os parasses só por um instante, perceberias que afinal sou eu quem procuras. Os meus olhos já encontraram os teus no meio das gentes todas que passam entre nós.
Se me deixares vou olhar-te bem no fundo de ti, bem longe do que mostras, bem perto do que eu te quero.
Leonor, se parares por hoje, se me deixares a tua janela aberta, trago-te em braços, vivo-te em palavras, guardo-te bem dentro de mim.
Olho-te mais uma vez no teu passo desacertado enquanto te espero aqui, na minha porta do 23. Aqui estou todos os dias à espera que seja hoje que os teus olhos param nos meus, que ouves os versos que fiz e que sorrias enquanto tos segredo de mansinho ao ver-te passar.
Hoje quando saíres vou fazer-te parar.