Prenderam-me a atenção: ela sentada no barco, arrastado pela areia à força de um tractor velho demais para ainda andar na arte, ele a acompanhar o barco, de sorriso no sorriso dela, a mão pousada sobre a dela, os dois assim sem palavras, só o vento a levar-lhe o cabelo para os olhos - a ela - e a encher-lhe os olhos claros de lágrimas - a ele. À volta a confusão de todos os dias, os gritos possantes, as gargalhadas frondosas, o palavreado que fere os ouvidos dos lisboetas que só ali vão de passeio, a cantoria das mulheres, fortes e cheias, de peito pesado e mãos ligeiras.
O barco baptizado de «Até que Enfim» desliza na areia como num rio espelhado e as redes seguem-nos carregadas de peixe luzidio. Ele segura-a num salto leve e um riso feliz enche a praia. Logo um pescador de voz grossa o chama de chapão, que se deixasse de parvoíces e fosse puxar as redes. Tudo isto bem regado de palavras impossíves de transcrever. O sorriso dela cai devagarinho na areia e o rapaz lá salta para o meio da confusão, tronco nú, queimado e musculado, pele grossa do sol e sal.
(A história deles não ma contaram por palavras, ninguém se abeirou de mim e me disse das suas razões - pena que tenho, porque se há coisa que gosto é que me contem histórias, me encham de sorrisos de outras vidas, me mostrem mundos outros que não o meu - mas a história destes dois fui sabendo nas minhas tardes de Verão na Costa, ali bem perto de casa e ao mesmo tempo tão longe de tudo.)
Susana chegara há pouco para o Agosto em Portugal. A velha história daqueles que fogem da vida difícil à procura de qualquer coisa melhor lá fora. Em França, perfeito cliché, claro está. Ela não tem mais que 20 anos, mas a ele só o sorriso de menino o trai, porque o corpo e o passo pesado dão-lhe duas vezes mais idade. Joaquim. Quim dos Anzóis, como chamam os mais novos ao vê-lo passar com as galochas ensopadas e o cabelo loiro num desalinho. Loiro daquele amarelo queimado pelo sol, rebelde e àspero, tão diferente do cabelo de Susana que liso se cola ao vento, castanho e sem história.
(Agora para conseguirem ver esta história com a luz que eu a vejo, têm que lembrar-se das tardes ventosas deste Agosto, das pessoas fugidias ou enfiadas nos seus chapéus e toalhas, e mesmo da doçura deste Verão que não sufoca e nos deixa mais despertos para as histórias que nos rodeiam. Pelo menos é o que me acontece a mim. Gosto do vento na cara, inspiro-o com força, encho-me e crio reservas desse fresco e caminho ate à pontinha do mar, até estas ondas carregadas dos últimos dias e deixo os salpicos pintarem-me as pernas secas e encherem-me de um arrepio bom.)
À noite há sempre conversa e música ali na casa da Tia Arminda, todos cá fora, cadeiras de plástico, um rádio com música a passar, um dos velhos mais bebido puxa uma das avós para dançar, a risota, a simplicidade dos momentos bons naquelas vidas duras que marcam o corpo e vincam a pele. Joaquim e Susana bem perto um do outro, as mãos que se tocam quando ele lhe passa uma Fanta, o sorriso dela que se esconde do olhar dos avós. Tudo fica ainda mais doce enquanto o sol poisa ao de leve no mar enraivecido.
Estou ali por perto, numa tasca improvisada com chapéus de uma marca qualquer de cerveja, enquanto me derreto num gelado bem doce. A minha companhia momentaneamnte silenciosa deixa-me aproveitar para ouvir a conversa de duas mulheres de cabelo branco revolto e mãos rudes como homens. «Isto já dura há muito, bem sabes. Não te lembras que em miúdos não se largavam? E no dia em que a Suse se foi, gaiata ainda, não tinha mais que uns 12 anitos mal amanhados, ele foi atrás do carro até lá ao cimo da rua, ficou muito tempo parado, a olhar, mãos nos bolsos e nem uma palavra, nem um gesto, nada. E assim se ficou calado, até ao Verão seguinte em que ela veio de férias. E assim tem sido sempre. Este meu neto é de ideias bem feitas, já te digo. Estou farta de avisá-lo para esquecer o raio da moça, vai haver um Verão que já não volta, fica agarrada de vez a um finório lá na França e depois fica-me aqui o rapaz calado para sempre». A outra ri-se «Até parece que não te lembras como era no nosso tempo...o Agosto era sempre uma galhofa, tantas histórias para contar...». Rio-me com elas. E vejo aqueles dois, lá ao fundo, no vão de uma escada, os corpos encostados e as mãos dele a apertarem-na no ar.
No próximo Verão hei-de cá voltar. Em Agosto ninguém me vai tirar a Praia dos Pescadores. Quero saber destes dois e em que fica esta história. Se o barco passar vazio no areal, o Joaquim mudo e orfão do seu sorriso de menino, salto ligeira para o «Até que Enfim» - esquecida dos tantos anos e mundos que nos separam - e dou-lhe o meu melhor sorriso à espera que a sua mão me venha agarrar. Pelo menos, até Agosto acabar.
O barco baptizado de «Até que Enfim» desliza na areia como num rio espelhado e as redes seguem-nos carregadas de peixe luzidio. Ele segura-a num salto leve e um riso feliz enche a praia. Logo um pescador de voz grossa o chama de chapão, que se deixasse de parvoíces e fosse puxar as redes. Tudo isto bem regado de palavras impossíves de transcrever. O sorriso dela cai devagarinho na areia e o rapaz lá salta para o meio da confusão, tronco nú, queimado e musculado, pele grossa do sol e sal.
(A história deles não ma contaram por palavras, ninguém se abeirou de mim e me disse das suas razões - pena que tenho, porque se há coisa que gosto é que me contem histórias, me encham de sorrisos de outras vidas, me mostrem mundos outros que não o meu - mas a história destes dois fui sabendo nas minhas tardes de Verão na Costa, ali bem perto de casa e ao mesmo tempo tão longe de tudo.)
Susana chegara há pouco para o Agosto em Portugal. A velha história daqueles que fogem da vida difícil à procura de qualquer coisa melhor lá fora. Em França, perfeito cliché, claro está. Ela não tem mais que 20 anos, mas a ele só o sorriso de menino o trai, porque o corpo e o passo pesado dão-lhe duas vezes mais idade. Joaquim. Quim dos Anzóis, como chamam os mais novos ao vê-lo passar com as galochas ensopadas e o cabelo loiro num desalinho. Loiro daquele amarelo queimado pelo sol, rebelde e àspero, tão diferente do cabelo de Susana que liso se cola ao vento, castanho e sem história.
(Agora para conseguirem ver esta história com a luz que eu a vejo, têm que lembrar-se das tardes ventosas deste Agosto, das pessoas fugidias ou enfiadas nos seus chapéus e toalhas, e mesmo da doçura deste Verão que não sufoca e nos deixa mais despertos para as histórias que nos rodeiam. Pelo menos é o que me acontece a mim. Gosto do vento na cara, inspiro-o com força, encho-me e crio reservas desse fresco e caminho ate à pontinha do mar, até estas ondas carregadas dos últimos dias e deixo os salpicos pintarem-me as pernas secas e encherem-me de um arrepio bom.)
À noite há sempre conversa e música ali na casa da Tia Arminda, todos cá fora, cadeiras de plástico, um rádio com música a passar, um dos velhos mais bebido puxa uma das avós para dançar, a risota, a simplicidade dos momentos bons naquelas vidas duras que marcam o corpo e vincam a pele. Joaquim e Susana bem perto um do outro, as mãos que se tocam quando ele lhe passa uma Fanta, o sorriso dela que se esconde do olhar dos avós. Tudo fica ainda mais doce enquanto o sol poisa ao de leve no mar enraivecido.
Estou ali por perto, numa tasca improvisada com chapéus de uma marca qualquer de cerveja, enquanto me derreto num gelado bem doce. A minha companhia momentaneamnte silenciosa deixa-me aproveitar para ouvir a conversa de duas mulheres de cabelo branco revolto e mãos rudes como homens. «Isto já dura há muito, bem sabes. Não te lembras que em miúdos não se largavam? E no dia em que a Suse se foi, gaiata ainda, não tinha mais que uns 12 anitos mal amanhados, ele foi atrás do carro até lá ao cimo da rua, ficou muito tempo parado, a olhar, mãos nos bolsos e nem uma palavra, nem um gesto, nada. E assim se ficou calado, até ao Verão seguinte em que ela veio de férias. E assim tem sido sempre. Este meu neto é de ideias bem feitas, já te digo. Estou farta de avisá-lo para esquecer o raio da moça, vai haver um Verão que já não volta, fica agarrada de vez a um finório lá na França e depois fica-me aqui o rapaz calado para sempre». A outra ri-se «Até parece que não te lembras como era no nosso tempo...o Agosto era sempre uma galhofa, tantas histórias para contar...». Rio-me com elas. E vejo aqueles dois, lá ao fundo, no vão de uma escada, os corpos encostados e as mãos dele a apertarem-na no ar.
No próximo Verão hei-de cá voltar. Em Agosto ninguém me vai tirar a Praia dos Pescadores. Quero saber destes dois e em que fica esta história. Se o barco passar vazio no areal, o Joaquim mudo e orfão do seu sorriso de menino, salto ligeira para o «Até que Enfim» - esquecida dos tantos anos e mundos que nos separam - e dou-lhe o meu melhor sorriso à espera que a sua mão me venha agarrar. Pelo menos, até Agosto acabar.
Gostei. Já tinha saudades das histórias. Parabéns.
ResponderEliminarContente pelo seu regresso às histórias de nós.
ResponderEliminarGostei do agarramento do Joaquim pela sua Susana.
Desejo-lhes felicidades que o mesmo é dizer, a todos
os Joaquins e Susanas...
Bj
Olinda
Feliz Natal
ResponderEliminar:)
Bj
Olinda