O senhor Cupido tinha a mercearia aberta desde o tempo que já ninguém lembrava. A loja tinha servido meninos que eram agora pais e pais que eram agora avós. Se a Rua de Predouços era o que era, muito se devia ao Senhor Cupido. Era homem sem idade, sem primeiro nome, sem história que não a do espaço sobrelotado de tudo o que dava para comprar e vender.
Havia sempre quem nos conhecesse, quem perguntasse «Então e o paizinho e a mãe, estão bons?», havia sempre um chocolate Regina que o senhor C. me escondia no bolso e havia o neto que nos espreitava atrás do balcão. Tinha grandes olhos pretos, mas não dizia o nome. Era o neto do Senhor Cupido e todos lhe passavam a mão nos caracóis escuros à espera de ouvir-lhe palavra. O avô também não se alargava em conversas sobre o menino. O que interessava era que as alfaces hoje estavam uma maravilha, que nunca o pão foi tão quentinho «acabado de cozer», que os biscoitos da Dona Amélia naquele dia é que estavam um mimo.
Eu pedia aos padrinhos para lá irmos sempre a seguir ao almoço. Até aos cinco anos passei os dias à espera das seis para os pais irem buscar-me e zarparmos de volta a casa. Eu dizia que queria ir ao Senhor Cupido, mas queria mesmo era espreitar os olhos do menino que se escondia por baixo da caixa registradora, que me olhava fixamente e que eu não conseguia desgrudar. Não lhe sabíamos a idade, nem lhe ouvíamos um som mas, na verdade, para mim já era ritual a que não queria faltar.
Quando fui para a escola dos crescidos passei a ir só a casa dos padrinhos ao Domingo e esse dia era sagrado: mercearia fechada e o senhor Cupido à janela do primeiro andar, agarrado a um cigarro, cumprimentando com um sorriso quem visse chegar. Do menino nem rasto e eu tinha vergonha de perguntar.
Passaram muitos anos até voltar à Rua de Pedrouços e quando voltei ia já em viatura e vontade próprias. Os padrinhos há muito que lá não estavam. A mercearia ainda aberta, aparentemente intocada. Tinha a certeza que entraria para abraçar o Senhor Cupido e perguntar-lhe pelo neto calado, mas ao balcão só uma loura muito loura, branca muito branca, de olho azul muito azul, com pronúncia pouco nacional e nada de sorrisos aos clientes. Dei uma volta no espaço diminuto -- já sabemos da inesgotável capacidade do tempo para encolher espaços e histórias --, perguntei ao empregado semicurvo e de fartos cabelos negros se dava licença para passar entre as alfaces descoradas e os pães congelados e saí desapontada.
Ao procurar a chave do carro no bolso do casaco encarnado encontrei um vistoso chocolate Regina. Espreitei à porta da mercearia. Além da loura com cara de poucos amigos, só uns lindos olhos escuros atrás do balcão. Em pontas dos pés descobri um menino recheado de caracóis louros muito louros. Pisquei-lhe o olho e saí.
Não olhei para trás, mas tenho a certeza que na janela do primeiro andar estaria o Senhor Cupido de cigarro entre os dedos e a sorrir ao ver-me zarpar.
Um desafio aos leitores!!
- Histórias de Nós
- Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..
terça-feira, 14 de fevereiro de 2023
Breve história do senhor Cupido
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