Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

domingo, 19 de março de 2023

Viagem a Bellaudiére

Há sempre muito que fica por dizer.
Por mais que tenha perdido o crivo e a vontade de calar, resta um espaço meio obscuro que guarda, sem querer, as palavras que mais pesam.
O exercício de libertação em contínuo que vim a descobrir, ainda não está completo. Provavelmente nunca chegará a estar e talvez seja mesmo assim.

Ele lê-me como ninguém; às vezes até antes de eu pressentir que alguma coisa cá dentro não está a funcionar como deve ser, já ele está a dizer-mo.
Tento deixar cair o que mais custa, seguir solta, mas sei, bem sei, que apesar de toda a ligeireza e cantarolices, resta ali um qualquer medo que ainda faz sentir que é preciso proteger(me).
Às vezes a vontade de fugir para o sítio mais bonito do mundo é força que me faz oscilar, entre o ir e o ficar, entre o deve e o querer.

Em Grasse moram a casa mais linda, os cheiros, a paisagem e as pessoas que mais me fazem sorrir de fora para dentro. Só lá passei dois Verões, mas era lá que eu queria estar neste micro-instante.

O cheiro a alfazema está em cada canto e dobra de lençol, está ao nascer do dia quando abro as portadas de madeira e está nas noites passadas no pátio ao luar. Lá sei que tudo mudava, porque tudo mudou sempre ao primeiro passo na casa que se debruça sobre o vale de todos os verdes e sobre o Mediterraneo azul turquesa.
Lá sou leve, cristalina, o mundo corre ligeiro e o tempo passa mais devagar, muito mais devagar.
Gostava de levá-lo a ele lá, pela mão, pelo menos um Verão de cada vez. E aos meninos também. E aos nossos e às amigas-irmãs que andam a ver-me crescer. 

A linda casa que cheira a Verão, e onde até o ar é mais fácil de respirar, será sempre colo e recomeço.

Fecho os olhos, inspiro fundo, consigo num segundo ir até à Bellaudiére.
Ele está na cama fresca, moreno, de corpo salgado e eu levanto-me para deixar o sol entrar.  Somos feitos de risos e somos feitos de corpo a ondular numa música só nossa, meio frenética, meio balanço.
Acabam-se as palavras que pesam e entra luz em cada recanto que teimo em calar. E assim, finalmente, não ficará nada por dizer e serei gentil alfazema com sabor a mar.







domingo, 12 de março de 2023

A menina dança?

Os dias andam cheios, intensos.
Bem sei que fui eu quem se queixou dos tempos mornos, quem ansiou por mais. Mas também fui quem se fechou na bolha do silêncio, acreditando que viria daí a cura para tudo. Contradição em permanência e exercício infinito de paciência ao maior santo: eis-me em toda a minha ambivalência e sacrilégio constante.
Depois dos tempos em suspenso, tudo se desdobra e multiplica em incontáveis variáveis, múltiplos imparáveis que não cessam de deslumbrar-me.

Eu bem disse que ela andava aí à espreita, oscilando.

Tenho vontade de ir dançar, vontade de encher-me de música por dentro e deixar o tempo fluir num encontro de corpos embalados num tom maior. Não sei se é festejo ou celebração, se é refúgio ou fuga temporária, mas sobe por mim a vontade de soltar o ritmo e o infindável encantamento de uma música sentida a dois.. ou a vinte.

Há um bom motivo para a festa: a clara certeza de uma verdade tantas vezes escutada e lida, que se torna tatuagem cravada, bem fundo, pelo tempo e guerras vividas até aqui chegar -- O Amor é Raro, Aproveite*. E as raridades devem ser levadas no colo, entre braços e abraços. É esta a terna certeza que dá vontade (esperança..?) do caminho. Tudo se resolve, dizes tu. Seja.

Mais uma razão para a celebração: ouvir de outro alguém, l e t r a   a   l e t r a , uma dor que nos vinha acompanhando, tão funda que não sabemos como verbalizar  -- há lá dor pior que a da injustiça perpetuada..? Arrumada na gaveta, mais uma, como tenho dito de tantas outras. Se dói e não podes acalmar, arruma na gaveta, sejam gavetas fechadas a sete chaves ou outras tantas entreabertas, mas de alguma forma arrumadas.
É como se tivessem deitado um braço inteiro para dentro de mim --- abra a boca, diga Ahhhh, língua para baixo, fique quieta para chegar lá ao fundo - e vasculhando bem nas profundezas, trouxessem à luz do dia aquele nó escuro que assim se desfez. Verdade, assim, por magia, por sabedoria, por simplicidade, botou a mão dentro de mim, tacteou no fundo, agarrou, trouxe cá para fora, deu-lhe um nome e ele assim desapareceu. Já nem interessa se a causa se evaporou (condensou, diria um dos meus meninos), se andará ainda a pairar; só interessa que alguém o viu lá escondido nas profundezas do que sou, pescou, nomeou e assim libertou-o. Correcção: libertou-Me.

Os dias andam cheios, intensos, com muita ternura dos meus, o amor raro e a sensação de haver muito de bom à espreita para acontecer. Já não falta tudo e tudo se resolve, diz ele. Vamos ver, seguimos caminho e, já agora, fazemo-lo a dançar?                                                                 
                                                                                                                                                        *de Caio Abreu.

Put you Records On -- Corinne Bailey Rae

Three little birds sat on my window
And they told me I don't need to worry
Summer came like cinnamon, so sweet
Little girls, double-dutch on the concrete

Maybe sometimes we got it wrong, but it's all right
The more things seems to change, the more they stay the same
Ooh, don't you hesitate
Girl, put your records on, tell me your favorite song
You go ahead, let your hair down
Sapphire and faded jeans
I hope you get your dreams
Just go ahead, let your hair down
You're gonna find yourself somewhere, somehow

Blue as the sky, sunburnt and lonely
Sipping tea in a bar by the road side
(Just relax, just relax)
Don't you let those other boys fool you
Gotta love that Afro hairdo

Maybe sometimes we feel afraid, but it's all right
The more you stay the same, the more they seem to change
Don't you think it's strange?
You go ahead, let your hair down
Sapphire and faded jeans
I hope you get your dreams
Just go ahead, let your hair down
You're gonna find yourself somewhere, somehow
Pity for pity's sake
Some nights kept me awake
I thought that I was stronger
When you gonna realize that you don't even have to try any longer?
Do what you want to


quinta-feira, 9 de março de 2023

Discurso directo (com um obrigada dentro)

Fazemos o caminho?

Fazemos o caminho. Continuamos.

Mesmo sem saber o destino?

Mesmo sem saber quase nada.

Mão na mão?

Mão na mão e dentro de um abraço.

Não te assusta?

Assusta pois.

E mesmo assim...?

E mesmo assim.

Vamos?

Anda.








segunda-feira, 6 de março de 2023

Dores de crescimento

Quando ela era ela, pouco ou nada a parava. Era vento e era sol, era riso e era silêncio.
Quando ela era ela, tudo era simples e descomplicado, tudo era à flor da pele e arrepio na barriga.
Quando ela era ela não havia horas para dormir, não havia sequer dormir se preciso fosse, não havia tempo para pensar.

Ela era muito, era tudo e queria provar o tanto que tinham andado a esconder-lhe. Fórmula perigosa esta, equação que tem tudo para magoar.

Quando ela se descobriu ela, não havia limites nem senão. Havia passarinho fora da gaiola com vontade de voar até querer: tudo era apetite, força desatinada, vontades de crescer. Voraz, infinitamente voraz.

Ela era dança até nascer o sol, era cantoria num palco acabado de acontecer, era viagens sem mapa nem dia para chegar, era fogo, terra, sol e ar. Era passeios à chuva, risadas ao vento, brisa no sol a escaldar, silêncios e vontades de gritar. Ela era deslizar na neve mais alta e era um caminho sozinha no alentejo sem fim.

Quando ela era ela, ainda não sabia da eterna balança entre o deve e o haver, o temer e o querer, o sossego e o destravar. Houve um preço a pagar e isso está gravado na pele e por dentro; não há cicatriz, mas sabe dizer exactamente cada milímetro onde fez doer. 

Ela ainda aí anda, latente, perene, sempre a espreitar. Quem sabe se ainda a deixo voltar-se a desassossegar.




domingo, 5 de março de 2023

Coisa simples

Disse-lhe que podíamos fazer um bolo. Foi o que disse, mas não foi o que pensei e ele sabe-o bem demais.
Mas até podia ser. Fazíamos um bolo entre abraços e sorrisos, entre arrepios e desejos.
Mas também pode ser um jantar, um filme, um passeio de mota, um gelado de mãos dadas, um colo sem tempo a contar.
Pode ser passearmos num abraço à beira rio, ou gargalhadas numa mesa cheia de amigos. Pode ser um museu dos meus, pode ser um jardim num dia de sol, podem ser meiguices entre os nossos.
Mas também pode ser um concerto em uníssono, um cigarro a iluminar a noite ou uma viagem a dois sem destino marcado.
E pode ser um mergulho no mar, ou ficarmos enrolados na piscina ou até no sol a queimar. Pode ser levar-me pela mão ao fim do dia e pode ser ficarmos em silêncio num sítio nosso.
Pode ser um abraço de peito colado, podem ser infinitos beijos no canto da orelha. Pode ser pele com pele, pode ser gemido em desatino.
Podem ser conversas de horas agarrados na varanda e podem ser medos partilhados com vontade de sossegar.
Mas também pode ser um chupa-chupa bem melado, ou um beijo tão perfeito como todos os que conseguimos roubar.
Lá está, não sou esquisita, com ele sou básica e fácil de agradar. Pode ser o que ele quiser, pode ser quando ele quiser -- mas vou pedir para não demorar.



quarta-feira, 1 de março de 2023

WishList

Saio de mãos geladas encostadas ao peito, inspiro o frio. O sol na pele sabe bem, mas sabe ainda melhor com o ar cortante da manhã. Vou pisando a erva molhada e oiço o silêncio da montanha. O cão-urso segue à minha frente, feliz por estarmos ali os dois. 
Faço o caminho de pedra até à beira da ribanceira. Gosto de estar aqui. Gosto muito de estar aqui. O ar frio queima as narinas e acorda todos os sentidos, um a um, sacudindo a noite bem dormida.
Deixo os olhos habituarem-se   de va gar   à luz da manhã e seguirem a linha sem fim. O vale, as árvores, as flores e o rio lá em baixo. O urso puxa-me pela roupa, como só ele sabe, porque quer seguir caminho. 
Já não há neve e agora até prefiro assim. Encontro-me em estado semi-permanente de calmaria e sossego e de longas horas a escrever a minha história - literal e alegoricamente. Foi o melhor que fiz. Deixei as luzes da cidade, as confusões de todos os dias, o telefone que só toca, os mil problemas mil que teimam em perpetuar-se. Fugi para aqui e para as páginas em branco - literal ou metaforicamente.  
No topo do mundo o tempo pára, os ciclos sucedem-se devagar. 

O urso sorri para mim. Não é invenção, o meu urso-cão ri-se para mim de todas as vezes que me vê.

Voltamos para a casa de pedra escura onde estás tu acabado de acordar. Cobras-me ter acordado sozinho, mas puxas-me para um abraço demorado. (todos os nossos abraços são na medida perfeita e quero-os sempre assim)
Nunca to disse, mas desde que te vi pela primeira vez deste jeito - calças vestidas, peito descoberto, camisola ao ombro - soube que serias perdição sem tempo para acabar. Não interessa se estamos no meio da confusão, se estamos neste sossego: a coisa dá-se.
Venho consolada cá para cima. A grande janela de madeira vigia a montanha e as tuas brincadeiras com o ursinho lá fora. Sei que os meninos estão bem e sei que há tempo para tudo o que tem de ser.

Faça-se silêncio, está na hora de começar.




segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Voz-Off

Que foi?

Nada.

Não me enganas.

Não sei andar no escuro.

Tens aqui a minha mão. E mais?

Não sei se sei ser pela metade.

Tens aí muitas conjugações do Ser.

Bem sei.

Continuas.

Perguntaste..

E tu respondeste.

Abres a porta, já sabes que entro.

Sei. Anda.

Onde?

Veremos.






sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

É proibido fumar

Digo-te que não gosto que fumes, mas a verdade é que gosto de ver-te fumar.
Explico: não gosto que fumes porque tenho medo das doenças, do mal que faz e come por dentro. E não gosto do fumo que me deixa em sibilos asmáticos.
Mas a verdade é que gosto de ver-te fumar, da tua pinta com o cigarro entre os lábios, do teu ar quando levantas o queixo a deixares o fumo sair, do teu ar sério -- só para ver desmanchares-te logo a seguir - e dos teus olhos em mim (os teus olhos em mim enquanto me sorris e em mim quando me queres sem travão)
Já pedi para aprenderes a fazer diáfanos corações de fumo, mas também sei que o mais que te digo é para largares os cigarros. Quero-te vivo, são, quero-te perto.
Naquele dia menti, disse que não podia ir à janela ver-te. Ou veres-me. Mas a verdade é que espreitei e vi-te na mota, passavas a mão no cabelo e tinhas um cigarro preso nos lábios. Não quis que me visses -- toda eu tremia, todo tu me fazes tremer - mas quis ver-te.
Não te quero mentir, só o faço quando tudo é demasiado demais e eu me faço fraca com vontade de enrolar-me num casulo fora de tempo.
Não vi corações esfumaçados, nem vi o teu sorriso de tão longe que estavas.  Eu tremo, tu fumas. Nada disto é muito saudável, nada disto era para ser assim. Mas é e não fazemos mais nada se não perguntar-nos todos os porquês.
Sabemos bem: a resposta temos os dois por dentro, mal ou bem já a sabemos, mas não é fácil pôr-lhe legenda. Como reduzir a uma resposta tudo o que para aqui vai? "Uma raridade", saiu-me no meio de um atropelo de emoções. Contigo é assim, emoções num corropio desde o micro-segundo em que a tua pele toca a minha, ou desde o momento em que oiço a tua voz a chamar-me como só tu me chamas ou no instante em que leio uma palavra tua. Confesso:  é mentira, sabes tão bem quanto eu que não é preciso nada disso. O feitiço está lançado e não tem tempo de acabar -- culpa da matéria de que somos feitos, matéria perfeitamente encaixável qual puzzle infinito com peças que se multiplicam incessantemente. E culpa de cada partícula indizível que nos compõe e que está permanentemente à procura do outro: infímas partículas que se puxam e se procuram, que se enredam e se fundem deixando de haver princípio de um e fim do outro.

Anda, acende um cigarro e já não sei se não é melhor acenderes um para mim também..












sábado, 18 de fevereiro de 2023

B.I.

Vamos pela estrada. Gosto do verbo ir e também gosto do ficar.
Gosto de ter os meus meninos a fazerem mil perguntas, mas também gosto do seu sossego. 
Gosto de ir com planos bem marcados e gosto de ir à descoberta.
Gosto ir para o calor e gosto de ir para o frio gelado.
Gosto do mar e gosto do campo, gosto da montanha e dos campos de girassóis.
Gosto das piscinas infinitas e gosto das ondas desconhecidas.
Gosto de ter um braço pela cintura e gosto de ter mãos pequeninas nas minhas.
Gosto de gargalhadas que fazem a barriga doer e gosto de silêncios encantados.
Gosto de gostar. Gosto muito de gostar.





sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Verdades à parte

Há um tempo em que parece que tudo pára.
Há um breve instante em que as luas se alinham, os sóis, estrelas e planetas e tudo entra em perfeita combinação. É nesse ínfimo tempo em que vislumbramos o que podemos ser. Nessa fracção de momento só estamos nós e o que nos une, esse fio invisível, perene, infinito, que corre de mim para ti e de ti para mim, num vai-vém que não tem como acabar.
Venham dores, tempestades, alegrias e festejos, venham dias que não acabam, a noite mais escura, o sol escaldante ou os vendavais; venham anos, dias, meses, venham muitos ou poucos, venham novos e os de sempre, venha tudo o que houver à mão de semear e o que estiver por inventar, que este fio mágico, brilhante, inesperado e inantigível se manterá. 
Pode ser uma palavra, pode ser um silêncio, pode ser uma vontade dita ou acalmada. Pode ser um sorriso, pode ser um abraço, pode ser um toque de pele, pode ser uma gargalhada, pode ser uma lágrima ou um arrepio. Podem ser mil combinações ou apenas uma, mas é nessa partícula de instante que este cordão etéreo se revela, rebrilha e nos torna equidistantes.

Não há nome, não há legenda, não há prova, mas, acreditem, é mesmo assim.







terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Breve história do senhor Cupido

O senhor Cupido tinha a mercearia aberta desde o tempo que já ninguém lembrava. A loja tinha servido meninos que eram agora pais e pais que eram agora avós. Se a Rua de Predouços era o que era, muito se devia ao Senhor Cupido. Era homem sem idade, sem primeiro nome, sem história que não a do espaço sobrelotado de tudo o que dava para comprar e vender.

Havia sempre quem nos conhecesse, quem perguntasse «Então e o paizinho e a mãe, estão bons?», havia sempre um chocolate Regina que o senhor C. me escondia no bolso e havia o neto que nos espreitava atrás do balcão. Tinha grandes olhos pretos, mas não dizia o nome. Era o neto do Senhor Cupido e todos lhe passavam a mão nos caracóis escuros à espera de ouvir-lhe palavra. O avô também não se alargava em conversas sobre o menino. O que interessava era que as alfaces hoje estavam uma maravilha, que nunca o pão foi tão quentinho «acabado de cozer», que os biscoitos da Dona Amélia naquele dia é que estavam um mimo.

Eu pedia aos padrinhos para lá irmos sempre a seguir ao almoço. Até aos cinco anos passei os dias à espera das seis para os pais irem buscar-me e zarparmos de volta a casa. Eu dizia que queria ir ao Senhor Cupido, mas queria mesmo era espreitar os olhos do menino que se escondia por baixo da caixa registradora, que me olhava fixamente e que eu não conseguia desgrudar. Não lhe sabíamos a idade, nem lhe ouvíamos um som mas, na verdade, para mim já era ritual a que não queria faltar.

Quando fui para a escola dos crescidos passei a ir só a casa dos padrinhos ao Domingo e esse dia era sagrado: mercearia fechada e o senhor Cupido à janela do primeiro andar, agarrado a um cigarro, cumprimentando com um sorriso quem visse chegar. Do menino nem rasto e eu tinha vergonha de perguntar.

Passaram muitos anos até voltar à Rua de Pedrouços e quando voltei ia já em viatura e vontade próprias. Os padrinhos há muito que lá não estavam. A mercearia ainda aberta, aparentemente intocada. Tinha a certeza que entraria para abraçar o Senhor Cupido e perguntar-lhe pelo neto calado, mas ao balcão só uma loura muito loura, branca muito branca, de olho azul muito azul, com pronúncia pouco nacional e nada de sorrisos aos clientes. Dei uma volta no espaço diminuto -- já sabemos da inesgotável capacidade do tempo para encolher espaços e histórias  --, perguntei ao empregado semicurvo e de fartos cabelos negros se dava licença para passar entre as alfaces descoradas e os pães congelados e saí desapontada. 

Ao procurar a chave do carro no bolso do casaco encarnado encontrei um vistoso chocolate Regina. Espreitei à porta da mercearia. Além da loura com cara de poucos amigos, só uns lindos olhos escuros atrás do balcão. Em pontas dos pés descobri um menino recheado de caracóis louros muito louros. Pisquei-lhe o olho e saí.

Não olhei para trás, mas tenho a certeza que na janela do primeiro andar estaria o Senhor Cupido de cigarro entre os dedos e a sorrir ao ver-me zarpar.



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Marginalidade(s)

Fazemos a marginal de mota. Ele sabe que isso faz-me feliz e assim disse «por ti abro excepção». Não gosta de penduras e eu percebo esta coisa dele -  até sorrio por isto é mesmo coisa tão dele -, mas faço-me, mais uma vez, excepção (e que somos nós se não aquilo que confirma todas as regras?)
Já pedi autorização para usar aqui as suas palavras, este vislumbre do que ele é. Diz que sim, mas também sei que não iria dizer que não. Não é convencimento, é que conheço-o tanto quanto ele me conhece a mim. Por dentro e por fora, sem cartilhas, nem mapas, sem serem sequer precisas desculpas ou oblíquas explicações. É, sempre foi, sempre será só assim.
Pede que o aperte com as minhas pernas, que me cole peito com costas, cabeça no ombro, mãos na cintura. Não precisa ver-me pelo espelho para saber que vou o tempo todo a sorrir: porque gosto de fazer a marginal de mota em dias de sol ameno e mar azul, porque gosto do vento na cara e na pele, porque é bom tê-lo - enfim - só para mim. Nestes momentos fico capaz de engoli-lo de amor, de paixão, de uma fome insaciável, sem limites e sem pudor. 
Deslizamos até à baía de Cascais. Corro para ir buscar gelados e besuntamos as bocas, entre gargalhadas e mil beijos mil, encostos e abraços, palavras doces e olhos um no outro. Mas não demoro os meus nos seus.

Não gosto de olhar nos seus olhos. Não gosto de olhar porque vejo o fundo do que há nele sobre nós. Os seus olhos em mim engolem-me, sugam-me, tenho medo que me façam desaparecer imperdivelmente, para sempre, para dentro dele. Juro, é avassalador e tira-me o fôlego. É pecado e perdição, é doçura e infinita paixão e são mil coisas que não sei ainda transcrever.

Pergunta se estou pronta para regressar. Respondo que não, sempre não, infinitas vezes não. A mota desliza ao vento, o sol já se põe, as minhas pernas prendem-se às suas e os nossos corpos encaixam sem pedir favor. Sem ele saber estou a devorá-lo de uma vez só, a ele, ao sol que se põe, à pele quente e à vontade que esta estrada não tenha fim.






domingo, 12 de fevereiro de 2023

Fins de Inverno

Vou largando as roupas pesadas, uma a uma. Arrepio-me porque lá fora faz frio e eu também tenho, ainda, coisas de gelo por dentro. Mas vou largando, peça a peça e isso torna-me mais leve.
A certeza de que depois ficarei melhor ajuda a esquecer os arrepios. A vontade de voltar à força sem fim, aos risos soltos e transparentes e às palavras que saem sem pensar, também ajuda. Não quero voltar à energia inesgotável: aprendi que também tenho que saber parar.
Assim, pé ante pé, ligeira mas segura, faço a estrada. Camada a camada vou deixando um estranho caminho enrodilhado pelo chão, que conta uma história, aquela de onde vim e para onde vou.
Já sei que tenho que respirar, que tenho que fechar os olhos e sossegar, que às vezes terei que deixar o tempo em suspenso e já sei que não preciso ter ninguém à minha espera. Ajuda se tiver a tua mão na minha, mas também já sei fazer o caminho sozinha.
Nestes dias frios, escuros e sem muita história, tenho sempre a ponta do nariz fria. Não sei porquê, mas assim é. Antes eram as mãos geladas; adorava entrar em camisolas alheias (dos meus!) com os dedos feitos cubos de gelo e senti-los arrepiar. Agora quanto muito esfrego a ponta do nariz nos meus amorzinhos, só para vê-los sorrir e sentir em todos os mais ínfimos poros o quanto somos uns dos outros.

Não tarda chega a Primavera e bem sei que será mais fácil deixar-me quase nua, largar o que ainda prende e pesa. Já pouco, bem pouco quando olho para trás e vejo o que já lá ficou pelo chão. Sorrio.

Agora já sei que o que me disseste não era só circunstância, sinto-o bem dentro de mim e sei que é verdade escrita no tempo: «Tudo passa, tudo passa meu amor».





sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Dó Maior

Ando aqui em semi-círculos. Meia volta para a direita, outra meia para a esquerda. Podia ser uma dança, coisa ritmada e boa, mas nem por isso. Ando a ver se me encontro. Acho que é isso, mas leve e pairante, sem nada das agruras que andaram comigo lá atrás.

Por acaso é verdade, tenho saudades de dançar. Também tenho saudades de cantar. De subir a um palco toda ligeirinha e aproveitar só o instante.
Também podia ser só cantar nas aulas com a Professora Cristina, toda ela espaçosa, em corpo e presença, a chamar-me os piores nomes quando teimava em esquecer-me do último Dó nas escalas - o que acontecia sempre..
Subia as escadas do prediozinho em Campo de Ourique com um nó no estômago: eram nervos e era responsabilidade. A Professora Cristina cantou com a Callas, foi nome primeiro da ópera nacional. (Até hoje acho que só pode ter-me aceite como aluna aqueles dois anos por alguma necessidade mais prática.)
A loura rapariga de grandes olhos azuis e voz cristalina que se cruzava comigo descendo as escadas cantarolando, era ser etéreo e carregado de um talento a que eu, ingenuamente, aspirava. Mais tarde consegui colar-lhe um nome quando a vi anunciada em palcos por aí fora (a quem interesse: era a Marta Hugon).
Eu chegava sempre atrasada, depois de voltas infinitas para estacionar, e naquela hora esvaziava-me de todas as notas, tons e sobre-tons acompanhada pelo piano firme da Professora Cristina. Descia de fugida para regressar ao trabalho -- ia sempre leve, feliz e catarolante. Não interessa se não serviu de nada, se rapidamente me resumi à minha insignificância vocal. Conheci Cristina de Castro, a sua sala encafuada de livros, vinis, bibelots, almofadas e sei lá que mais e fui muito feliz em Campo de Ourique, mesmo que numa corrida, mesmo que perdida entre o riso e a nervoseira por cada palavrão que me era destinado - e merecido, pois claro - por aquela senhora incrível com as histórias mais geniais.
O palco agora é a pedido das minhas crianças. Ainda consigo chegar ao Dó mais agudo, tímpanos a vibrar e ar quase a faltar, mas faltam-me as minhas horas de almoço num pulinho a casa da Professora, onde o mundo ficava em suspenso por 60 minutos enquanto aprendia a ser simplesmente afinada e feliz.

(Descobri agora que a Professora Cristina morreu dois anos depois da minha última aula. Uma memória dela aqui: https://www.youtube.com/watch?v=UV3DIb9PUKw )


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Passo a Passo

 1,2, 3 aqui vou eu outra vez.

Não é que me custe, nem que não me custe, não é que goste, ou que deixe de gostar. Desta vez mais serena, com menos pressas, menos receios. Os tempos são outros, os anos passaram, os miúdos cresceram e tudo isso torna o caminho mais ligeiro.

Tal como os amigos-família que me levam pela mão e sei que estão aqui para o que der e vier. O que der e vier, o que vier e der. Vou juntando-os nos passos dos meus dias. Os que vêm de trás, os que vêm de sempre, os de há pouco e os de agora, todos unos, todos cheios de amor. O afecto é o que mais interessa, já dizia a Madrinha. Por eles corro sempre que chamarem, por mim sei que estão ali à distância de um Ai. Não são assim tão poucos, nem são assim tantos e são todos muito, muito bons. Homens e mulheres,, mais novos, mais velhos, com muito, com pouco, mas o que os une - que nos une - é a verdade à flor da pele. Tudo à flor da pele. Se for preciso, brutos como tudo, brutos a fazer doer, mas com o colo sempre pronto.

E de cada vez que me atrevo a contar um passo que esteja a preparar - louca, louca, louca, oiço lá do fundo de mim - o que tenho deles é um vai, segue, tens mesmo é que ir, viver, fazer. Há lá maior amor?

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Fio de Luz

Hoje, como sempre, e mil vezes mil vezes mil, bato à porta trancada Espero mais que um vazio

Colhida a um canto,

luz presa num fio,

Ela quebrou o encanto

espreitou à janela, riu


tocou a mão estendida,

cobriu-se num segundo,

Minha linda bela adormecida

Esquecida deste mundo


Vem, anda:


Na minha pele

No teu beijo

No meu colo

Num desejo 


Voltas a ser mulher 

- para mim sempre tudo - 

Encontramo-nos no prazer,

No fundo do suspiro, mudo


terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Bandeira verde

Vivíamos nos silêncios, agora somos só leveza.
Ainda não consigo perceber esta mágica: precisamos ir ao fundo, tocar os pés no chão e ganhar impulso para voltar a subir. E quando subimos vamos largando pesos e silêncios e dores e manias e medos e fantasmas, para chegar à tona nesta ligeireza bem feliz.
Foi um médico quem me ensinou a lição. Já se sabe - e aqui confessei - que não me demoro em palavras sobre mim, nem nas boas, nem nas más, nem nas assim-assim, mas essas encaixaram no puzzle absolutamente imperfeito que eu era há uma década.
Primeiro eu, depois ele. Entretanto alguns anos de profundos silêncios, alguns gritos sentidos, algumas histórias com princípio e meio, mas pouco fim.
Dia após dia tenho-o ouvido, maravilhada com a ligeireza com que agora se apresenta. Foram-se os silêncios e foi-se aquele peso todo que se nos entranhava na pele e nos sentidos: eramos (era?) só meio-vivos, emparedados em silêncios infinitos.
Tocámos com a ponta dos pés no fundo, primeiro eu, depois ele, e agora flutuamos à tona, sem saber onde estão as linhas, as fronteiras, os limites. Já aqui contei: o meu melhor sonho sou eu deitada no mar, sem saber onde começo e muito menos onde acabo, leve, leve, sem fim.

Pensava que vinha aqui contar histórias, mas afinal estou só a procurar o embalo. Por enquanto é o que temos: diário de bordo, sem data, sem nomes, sem jeito. De mim, para mim.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Uma forma de Assim

Chegava a casa feliz. A Dona Leonor dava-nos, a mim e ao meu irmão, uma vianinha carregada de manteiga e um copo de leite. Naquele tempo ainda não comíamos iogurtes a metro como agora, nem pão escuro com cereais ou barras de coisas integrais.  Devorado o lanche, desaparecia para o meu canto. A mãe deixara sempre um espaço entre o sofá encarnado e a grande janela que dava para a varanda. Nos dias de calor havia uma fresta aberta e o cortinado branco dançava incansável. Se há coisa que me faz sorrir é lembrar do bem que sabia deitar-me atrás do sofá, sentir a madeira fria e dura na cara, nas palmas das mãos e imediatamente adormecer. Memória boa que dá vontade de voltar para trás do sofá, tantas décadas depois. (Não será por acaso que, nos momentos mais doídos, é no chão que me deixo a chorar. Choro muito, muito, faço tudo para chorar o mais que tenha por dentro. Esvazio-me, para depois recomeçar. Esvaziar e voltar a andar. Já há muito que não acontece e ainda bem e que assim continue e bate três vezes na madeira e não se fala mais nisso)

Muitas vezes acordava já no escuro e não havia nada melhor.  Corria para o quarto da mãe. Tinha que ser depressa antes que ela chegasse e descobrisse o segredo. O camiseiro de madeira escura escondia mil vestidos de princesas. Leves, com folhos, fitinhas e laços. Os preferidos: um branco etéreo com uma fita azul clara no decote e um rosa com folhos de cima a baixo. Nunca vira a mãe com aquelas camisas de dormir e ainda bem porque, assim, vestiam-me de histórias de meninas e fadinhas sem ninguém desconfiar.

Não sei porque não tenho uma camisa de dormir de folhos e fitinhas. Não sei porque deixei de escorregar para o chão numa sesta fresca enquanto o cortinado branco da minha sala dança sobre mim. Não sei porque já não como vianhinas carregadas de manteiga, nem porque os dias acabam mal estão a começar. Estou aqui mas ainda lá estou -- também. 

Fecha os olhos e ouve-me baixinho no canto da tua orelha: 

Gostava que te deitasses comigo num chão de madeira fresca, de mãos dadas, talvez só mesmo as pontas dos dedos a tocarem-se, talvez mesmo sem uma palavra sequer. Vais queixar-te das costas, do tempo que já passou, do frio na pele, mas eu não quero saber, porque volto a ser pequenina, ao teu lado. Assim.


domingo, 5 de fevereiro de 2023

Amanhecer

Demoro-me nos lençóis quentes da noite bem dormida.
Se me desvio um milímetro, arrepio de frio. A cama está vazia de outro que não eu e até me sabe bem assim.
Deixo os dias começarem devagar, estico uma e outra parte de mim, à vez. Procuro as vozes das crianças; às vezes estão, outras não.
Enquanto desperto devagarinho da noite espreito se o dia já chegou. Entra luz pelas falhas do estore e assim sei que está na hora. Na hora de começar.
E está mesmo na hora de começar, acordar, de voltar a mim. No fundo, sair do casulo em que me enrolei em cura demorada.
Aos poucos, com vagar e sem tempo a contar, voltam as vontades nas pontas dos dedos e à flor da pele. Mais regradas: quando caímos não queremos voltar ali.

Enche o peito de ar e vai, disseste tu.
Bem sabes que as palavras correm por mim e poucas são as que ficam. Não é arrogância, é falta de tino mesmo. Mas estas guardei-as sem saber -- melhor, sem querer.

Vamos.

Menina, toca a acordar.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Regresso(s)

Voltamos?

Não sei, diz-me tu.

És sempre isto. Peço respostas, dás-me reflexões.

E, ainda assim, aqui estamos. Já viste?

Sim, bem sei. És vício, sal na ferida que não deixa de arder.

Já me disseste coisas mais doces.

Já fui mais doce.

Não penses que me enganas. Ainda estás aí.

Seja.

Não fiques assim. Sabes que isso faz doer.

É escudo, é capa de gelo. Por dentro eu, a mesma.

Por isso te espero. Venham dias, meses, anos. Vou estar sempre aqui.

Sim, sei que estás. Mas não como eu queria.

Não se pode ter tudo.

Anos a ouvir essa conversa.

É verdade.

Não quero saber.

Não chega já disto? Minha querida, meu desassossego, minha perdição em flor: anda, chega-te a mim.

Aqui estou.



(De volta!)