Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

domingo, 19 de março de 2023

Viagem a Bellaudiére

Há sempre muito que fica por dizer.
Por mais que tenha perdido o crivo e a vontade de calar, resta um espaço meio obscuro que guarda, sem querer, as palavras que mais pesam.
O exercício de libertação em contínuo que vim a descobrir, ainda não está completo. Provavelmente nunca chegará a estar e talvez seja mesmo assim.

Ele lê-me como ninguém; às vezes até antes de eu pressentir que alguma coisa cá dentro não está a funcionar como deve ser, já ele está a dizer-mo.
Tento deixar cair o que mais custa, seguir solta, mas sei, bem sei, que apesar de toda a ligeireza e cantarolices, resta ali um qualquer medo que ainda faz sentir que é preciso proteger(me).
Às vezes a vontade de fugir para o sítio mais bonito do mundo é força que me faz oscilar, entre o ir e o ficar, entre o deve e o querer.

Em Grasse moram a casa mais linda, os cheiros, a paisagem e as pessoas que mais me fazem sorrir de fora para dentro. Só lá passei dois Verões, mas era lá que eu queria estar neste micro-instante.

O cheiro a alfazema está em cada canto e dobra de lençol, está ao nascer do dia quando abro as portadas de madeira e está nas noites passadas no pátio ao luar. Lá sei que tudo mudava, porque tudo mudou sempre ao primeiro passo na casa que se debruça sobre o vale de todos os verdes e sobre o Mediterraneo azul turquesa.
Lá sou leve, cristalina, o mundo corre ligeiro e o tempo passa mais devagar, muito mais devagar.
Gostava de levá-lo a ele lá, pela mão, pelo menos um Verão de cada vez. E aos meninos também. E aos nossos e às amigas-irmãs que andam a ver-me crescer. 

A linda casa que cheira a Verão, e onde até o ar é mais fácil de respirar, será sempre colo e recomeço.

Fecho os olhos, inspiro fundo, consigo num segundo ir até à Bellaudiére.
Ele está na cama fresca, moreno, de corpo salgado e eu levanto-me para deixar o sol entrar.  Somos feitos de risos e somos feitos de corpo a ondular numa música só nossa, meio frenética, meio balanço.
Acabam-se as palavras que pesam e entra luz em cada recanto que teimo em calar. E assim, finalmente, não ficará nada por dizer e serei gentil alfazema com sabor a mar.







domingo, 12 de março de 2023

A menina dança?

Os dias andam cheios, intensos.
Bem sei que fui eu quem se queixou dos tempos mornos, quem ansiou por mais. Mas também fui quem se fechou na bolha do silêncio, acreditando que viria daí a cura para tudo. Contradição em permanência e exercício infinito de paciência ao maior santo: eis-me em toda a minha ambivalência e sacrilégio constante.
Depois dos tempos em suspenso, tudo se desdobra e multiplica em incontáveis variáveis, múltiplos imparáveis que não cessam de deslumbrar-me.

Eu bem disse que ela andava aí à espreita, oscilando.

Tenho vontade de ir dançar, vontade de encher-me de música por dentro e deixar o tempo fluir num encontro de corpos embalados num tom maior. Não sei se é festejo ou celebração, se é refúgio ou fuga temporária, mas sobe por mim a vontade de soltar o ritmo e o infindável encantamento de uma música sentida a dois.. ou a vinte.

Há um bom motivo para a festa: a clara certeza de uma verdade tantas vezes escutada e lida, que se torna tatuagem cravada, bem fundo, pelo tempo e guerras vividas até aqui chegar -- O Amor é Raro, Aproveite*. E as raridades devem ser levadas no colo, entre braços e abraços. É esta a terna certeza que dá vontade (esperança..?) do caminho. Tudo se resolve, dizes tu. Seja.

Mais uma razão para a celebração: ouvir de outro alguém, l e t r a   a   l e t r a , uma dor que nos vinha acompanhando, tão funda que não sabemos como verbalizar  -- há lá dor pior que a da injustiça perpetuada..? Arrumada na gaveta, mais uma, como tenho dito de tantas outras. Se dói e não podes acalmar, arruma na gaveta, sejam gavetas fechadas a sete chaves ou outras tantas entreabertas, mas de alguma forma arrumadas.
É como se tivessem deitado um braço inteiro para dentro de mim --- abra a boca, diga Ahhhh, língua para baixo, fique quieta para chegar lá ao fundo - e vasculhando bem nas profundezas, trouxessem à luz do dia aquele nó escuro que assim se desfez. Verdade, assim, por magia, por sabedoria, por simplicidade, botou a mão dentro de mim, tacteou no fundo, agarrou, trouxe cá para fora, deu-lhe um nome e ele assim desapareceu. Já nem interessa se a causa se evaporou (condensou, diria um dos meus meninos), se andará ainda a pairar; só interessa que alguém o viu lá escondido nas profundezas do que sou, pescou, nomeou e assim libertou-o. Correcção: libertou-Me.

Os dias andam cheios, intensos, com muita ternura dos meus, o amor raro e a sensação de haver muito de bom à espreita para acontecer. Já não falta tudo e tudo se resolve, diz ele. Vamos ver, seguimos caminho e, já agora, fazemo-lo a dançar?                                                                 
                                                                                                                                                        *de Caio Abreu.

Put you Records On -- Corinne Bailey Rae

Three little birds sat on my window
And they told me I don't need to worry
Summer came like cinnamon, so sweet
Little girls, double-dutch on the concrete

Maybe sometimes we got it wrong, but it's all right
The more things seems to change, the more they stay the same
Ooh, don't you hesitate
Girl, put your records on, tell me your favorite song
You go ahead, let your hair down
Sapphire and faded jeans
I hope you get your dreams
Just go ahead, let your hair down
You're gonna find yourself somewhere, somehow

Blue as the sky, sunburnt and lonely
Sipping tea in a bar by the road side
(Just relax, just relax)
Don't you let those other boys fool you
Gotta love that Afro hairdo

Maybe sometimes we feel afraid, but it's all right
The more you stay the same, the more they seem to change
Don't you think it's strange?
You go ahead, let your hair down
Sapphire and faded jeans
I hope you get your dreams
Just go ahead, let your hair down
You're gonna find yourself somewhere, somehow
Pity for pity's sake
Some nights kept me awake
I thought that I was stronger
When you gonna realize that you don't even have to try any longer?
Do what you want to


quinta-feira, 9 de março de 2023

Discurso directo (com um obrigada dentro)

Fazemos o caminho?

Fazemos o caminho. Continuamos.

Mesmo sem saber o destino?

Mesmo sem saber quase nada.

Mão na mão?

Mão na mão e dentro de um abraço.

Não te assusta?

Assusta pois.

E mesmo assim...?

E mesmo assim.

Vamos?

Anda.








segunda-feira, 6 de março de 2023

Dores de crescimento

Quando ela era ela, pouco ou nada a parava. Era vento e era sol, era riso e era silêncio.
Quando ela era ela, tudo era simples e descomplicado, tudo era à flor da pele e arrepio na barriga.
Quando ela era ela não havia horas para dormir, não havia sequer dormir se preciso fosse, não havia tempo para pensar.

Ela era muito, era tudo e queria provar o tanto que tinham andado a esconder-lhe. Fórmula perigosa esta, equação que tem tudo para magoar.

Quando ela se descobriu ela, não havia limites nem senão. Havia passarinho fora da gaiola com vontade de voar até querer: tudo era apetite, força desatinada, vontades de crescer. Voraz, infinitamente voraz.

Ela era dança até nascer o sol, era cantoria num palco acabado de acontecer, era viagens sem mapa nem dia para chegar, era fogo, terra, sol e ar. Era passeios à chuva, risadas ao vento, brisa no sol a escaldar, silêncios e vontades de gritar. Ela era deslizar na neve mais alta e era um caminho sozinha no alentejo sem fim.

Quando ela era ela, ainda não sabia da eterna balança entre o deve e o haver, o temer e o querer, o sossego e o destravar. Houve um preço a pagar e isso está gravado na pele e por dentro; não há cicatriz, mas sabe dizer exactamente cada milímetro onde fez doer. 

Ela ainda aí anda, latente, perene, sempre a espreitar. Quem sabe se ainda a deixo voltar-se a desassossegar.




domingo, 5 de março de 2023

Coisa simples

Disse-lhe que podíamos fazer um bolo. Foi o que disse, mas não foi o que pensei e ele sabe-o bem demais.
Mas até podia ser. Fazíamos um bolo entre abraços e sorrisos, entre arrepios e desejos.
Mas também pode ser um jantar, um filme, um passeio de mota, um gelado de mãos dadas, um colo sem tempo a contar.
Pode ser passearmos num abraço à beira rio, ou gargalhadas numa mesa cheia de amigos. Pode ser um museu dos meus, pode ser um jardim num dia de sol, podem ser meiguices entre os nossos.
Mas também pode ser um concerto em uníssono, um cigarro a iluminar a noite ou uma viagem a dois sem destino marcado.
E pode ser um mergulho no mar, ou ficarmos enrolados na piscina ou até no sol a queimar. Pode ser levar-me pela mão ao fim do dia e pode ser ficarmos em silêncio num sítio nosso.
Pode ser um abraço de peito colado, podem ser infinitos beijos no canto da orelha. Pode ser pele com pele, pode ser gemido em desatino.
Podem ser conversas de horas agarrados na varanda e podem ser medos partilhados com vontade de sossegar.
Mas também pode ser um chupa-chupa bem melado, ou um beijo tão perfeito como todos os que conseguimos roubar.
Lá está, não sou esquisita, com ele sou básica e fácil de agradar. Pode ser o que ele quiser, pode ser quando ele quiser -- mas vou pedir para não demorar.



quarta-feira, 1 de março de 2023

WishList

Saio de mãos geladas encostadas ao peito, inspiro o frio. O sol na pele sabe bem, mas sabe ainda melhor com o ar cortante da manhã. Vou pisando a erva molhada e oiço o silêncio da montanha. O cão-urso segue à minha frente, feliz por estarmos ali os dois. 
Faço o caminho de pedra até à beira da ribanceira. Gosto de estar aqui. Gosto muito de estar aqui. O ar frio queima as narinas e acorda todos os sentidos, um a um, sacudindo a noite bem dormida.
Deixo os olhos habituarem-se   de va gar   à luz da manhã e seguirem a linha sem fim. O vale, as árvores, as flores e o rio lá em baixo. O urso puxa-me pela roupa, como só ele sabe, porque quer seguir caminho. 
Já não há neve e agora até prefiro assim. Encontro-me em estado semi-permanente de calmaria e sossego e de longas horas a escrever a minha história - literal e alegoricamente. Foi o melhor que fiz. Deixei as luzes da cidade, as confusões de todos os dias, o telefone que só toca, os mil problemas mil que teimam em perpetuar-se. Fugi para aqui e para as páginas em branco - literal ou metaforicamente.  
No topo do mundo o tempo pára, os ciclos sucedem-se devagar. 

O urso sorri para mim. Não é invenção, o meu urso-cão ri-se para mim de todas as vezes que me vê.

Voltamos para a casa de pedra escura onde estás tu acabado de acordar. Cobras-me ter acordado sozinho, mas puxas-me para um abraço demorado. (todos os nossos abraços são na medida perfeita e quero-os sempre assim)
Nunca to disse, mas desde que te vi pela primeira vez deste jeito - calças vestidas, peito descoberto, camisola ao ombro - soube que serias perdição sem tempo para acabar. Não interessa se estamos no meio da confusão, se estamos neste sossego: a coisa dá-se.
Venho consolada cá para cima. A grande janela de madeira vigia a montanha e as tuas brincadeiras com o ursinho lá fora. Sei que os meninos estão bem e sei que há tempo para tudo o que tem de ser.

Faça-se silêncio, está na hora de começar.




segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Voz-Off

Que foi?

Nada.

Não me enganas.

Não sei andar no escuro.

Tens aqui a minha mão. E mais?

Não sei se sei ser pela metade.

Tens aí muitas conjugações do Ser.

Bem sei.

Continuas.

Perguntaste..

E tu respondeste.

Abres a porta, já sabes que entro.

Sei. Anda.

Onde?

Veremos.






sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

É proibido fumar

Digo-te que não gosto que fumes, mas a verdade é que gosto de ver-te fumar.
Explico: não gosto que fumes porque tenho medo das doenças, do mal que faz e come por dentro. E não gosto do fumo que me deixa em sibilos asmáticos.
Mas a verdade é que gosto de ver-te fumar, da tua pinta com o cigarro entre os lábios, do teu ar quando levantas o queixo a deixares o fumo sair, do teu ar sério -- só para ver desmanchares-te logo a seguir - e dos teus olhos em mim (os teus olhos em mim enquanto me sorris e em mim quando me queres sem travão)
Já pedi para aprenderes a fazer diáfanos corações de fumo, mas também sei que o mais que te digo é para largares os cigarros. Quero-te vivo, são, quero-te perto.
Naquele dia menti, disse que não podia ir à janela ver-te. Ou veres-me. Mas a verdade é que espreitei e vi-te na mota, passavas a mão no cabelo e tinhas um cigarro preso nos lábios. Não quis que me visses -- toda eu tremia, todo tu me fazes tremer - mas quis ver-te.
Não te quero mentir, só o faço quando tudo é demasiado demais e eu me faço fraca com vontade de enrolar-me num casulo fora de tempo.
Não vi corações esfumaçados, nem vi o teu sorriso de tão longe que estavas.  Eu tremo, tu fumas. Nada disto é muito saudável, nada disto era para ser assim. Mas é e não fazemos mais nada se não perguntar-nos todos os porquês.
Sabemos bem: a resposta temos os dois por dentro, mal ou bem já a sabemos, mas não é fácil pôr-lhe legenda. Como reduzir a uma resposta tudo o que para aqui vai? "Uma raridade", saiu-me no meio de um atropelo de emoções. Contigo é assim, emoções num corropio desde o micro-segundo em que a tua pele toca a minha, ou desde o momento em que oiço a tua voz a chamar-me como só tu me chamas ou no instante em que leio uma palavra tua. Confesso:  é mentira, sabes tão bem quanto eu que não é preciso nada disso. O feitiço está lançado e não tem tempo de acabar -- culpa da matéria de que somos feitos, matéria perfeitamente encaixável qual puzzle infinito com peças que se multiplicam incessantemente. E culpa de cada partícula indizível que nos compõe e que está permanentemente à procura do outro: infímas partículas que se puxam e se procuram, que se enredam e se fundem deixando de haver princípio de um e fim do outro.

Anda, acende um cigarro e já não sei se não é melhor acenderes um para mim também..












sábado, 18 de fevereiro de 2023

B.I.

Vamos pela estrada. Gosto do verbo ir e também gosto do ficar.
Gosto de ter os meus meninos a fazerem mil perguntas, mas também gosto do seu sossego. 
Gosto de ir com planos bem marcados e gosto de ir à descoberta.
Gosto ir para o calor e gosto de ir para o frio gelado.
Gosto do mar e gosto do campo, gosto da montanha e dos campos de girassóis.
Gosto das piscinas infinitas e gosto das ondas desconhecidas.
Gosto de ter um braço pela cintura e gosto de ter mãos pequeninas nas minhas.
Gosto de gargalhadas que fazem a barriga doer e gosto de silêncios encantados.
Gosto de gostar. Gosto muito de gostar.





sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Verdades à parte

Há um tempo em que parece que tudo pára.
Há um breve instante em que as luas se alinham, os sóis, estrelas e planetas e tudo entra em perfeita combinação. É nesse ínfimo tempo em que vislumbramos o que podemos ser. Nessa fracção de momento só estamos nós e o que nos une, esse fio invisível, perene, infinito, que corre de mim para ti e de ti para mim, num vai-vém que não tem como acabar.
Venham dores, tempestades, alegrias e festejos, venham dias que não acabam, a noite mais escura, o sol escaldante ou os vendavais; venham anos, dias, meses, venham muitos ou poucos, venham novos e os de sempre, venha tudo o que houver à mão de semear e o que estiver por inventar, que este fio mágico, brilhante, inesperado e inantigível se manterá. 
Pode ser uma palavra, pode ser um silêncio, pode ser uma vontade dita ou acalmada. Pode ser um sorriso, pode ser um abraço, pode ser um toque de pele, pode ser uma gargalhada, pode ser uma lágrima ou um arrepio. Podem ser mil combinações ou apenas uma, mas é nessa partícula de instante que este cordão etéreo se revela, rebrilha e nos torna equidistantes.

Não há nome, não há legenda, não há prova, mas, acreditem, é mesmo assim.







terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Breve história do senhor Cupido

O senhor Cupido tinha a mercearia aberta desde o tempo que já ninguém lembrava. A loja tinha servido meninos que eram agora pais e pais que eram agora avós. Se a Rua de Predouços era o que era, muito se devia ao Senhor Cupido. Era homem sem idade, sem primeiro nome, sem história que não a do espaço sobrelotado de tudo o que dava para comprar e vender.

Havia sempre quem nos conhecesse, quem perguntasse «Então e o paizinho e a mãe, estão bons?», havia sempre um chocolate Regina que o senhor C. me escondia no bolso e havia o neto que nos espreitava atrás do balcão. Tinha grandes olhos pretos, mas não dizia o nome. Era o neto do Senhor Cupido e todos lhe passavam a mão nos caracóis escuros à espera de ouvir-lhe palavra. O avô também não se alargava em conversas sobre o menino. O que interessava era que as alfaces hoje estavam uma maravilha, que nunca o pão foi tão quentinho «acabado de cozer», que os biscoitos da Dona Amélia naquele dia é que estavam um mimo.

Eu pedia aos padrinhos para lá irmos sempre a seguir ao almoço. Até aos cinco anos passei os dias à espera das seis para os pais irem buscar-me e zarparmos de volta a casa. Eu dizia que queria ir ao Senhor Cupido, mas queria mesmo era espreitar os olhos do menino que se escondia por baixo da caixa registradora, que me olhava fixamente e que eu não conseguia desgrudar. Não lhe sabíamos a idade, nem lhe ouvíamos um som mas, na verdade, para mim já era ritual a que não queria faltar.

Quando fui para a escola dos crescidos passei a ir só a casa dos padrinhos ao Domingo e esse dia era sagrado: mercearia fechada e o senhor Cupido à janela do primeiro andar, agarrado a um cigarro, cumprimentando com um sorriso quem visse chegar. Do menino nem rasto e eu tinha vergonha de perguntar.

Passaram muitos anos até voltar à Rua de Pedrouços e quando voltei ia já em viatura e vontade próprias. Os padrinhos há muito que lá não estavam. A mercearia ainda aberta, aparentemente intocada. Tinha a certeza que entraria para abraçar o Senhor Cupido e perguntar-lhe pelo neto calado, mas ao balcão só uma loura muito loura, branca muito branca, de olho azul muito azul, com pronúncia pouco nacional e nada de sorrisos aos clientes. Dei uma volta no espaço diminuto -- já sabemos da inesgotável capacidade do tempo para encolher espaços e histórias  --, perguntei ao empregado semicurvo e de fartos cabelos negros se dava licença para passar entre as alfaces descoradas e os pães congelados e saí desapontada. 

Ao procurar a chave do carro no bolso do casaco encarnado encontrei um vistoso chocolate Regina. Espreitei à porta da mercearia. Além da loura com cara de poucos amigos, só uns lindos olhos escuros atrás do balcão. Em pontas dos pés descobri um menino recheado de caracóis louros muito louros. Pisquei-lhe o olho e saí.

Não olhei para trás, mas tenho a certeza que na janela do primeiro andar estaria o Senhor Cupido de cigarro entre os dedos e a sorrir ao ver-me zarpar.



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Marginalidade(s)

Fazemos a marginal de mota. Ele sabe que isso faz-me feliz e assim disse «por ti abro excepção». Não gosta de penduras e eu percebo esta coisa dele -  até sorrio por isto é mesmo coisa tão dele -, mas faço-me, mais uma vez, excepção (e que somos nós se não aquilo que confirma todas as regras?)
Já pedi autorização para usar aqui as suas palavras, este vislumbre do que ele é. Diz que sim, mas também sei que não iria dizer que não. Não é convencimento, é que conheço-o tanto quanto ele me conhece a mim. Por dentro e por fora, sem cartilhas, nem mapas, sem serem sequer precisas desculpas ou oblíquas explicações. É, sempre foi, sempre será só assim.
Pede que o aperte com as minhas pernas, que me cole peito com costas, cabeça no ombro, mãos na cintura. Não precisa ver-me pelo espelho para saber que vou o tempo todo a sorrir: porque gosto de fazer a marginal de mota em dias de sol ameno e mar azul, porque gosto do vento na cara e na pele, porque é bom tê-lo - enfim - só para mim. Nestes momentos fico capaz de engoli-lo de amor, de paixão, de uma fome insaciável, sem limites e sem pudor. 
Deslizamos até à baía de Cascais. Corro para ir buscar gelados e besuntamos as bocas, entre gargalhadas e mil beijos mil, encostos e abraços, palavras doces e olhos um no outro. Mas não demoro os meus nos seus.

Não gosto de olhar nos seus olhos. Não gosto de olhar porque vejo o fundo do que há nele sobre nós. Os seus olhos em mim engolem-me, sugam-me, tenho medo que me façam desaparecer imperdivelmente, para sempre, para dentro dele. Juro, é avassalador e tira-me o fôlego. É pecado e perdição, é doçura e infinita paixão e são mil coisas que não sei ainda transcrever.

Pergunta se estou pronta para regressar. Respondo que não, sempre não, infinitas vezes não. A mota desliza ao vento, o sol já se põe, as minhas pernas prendem-se às suas e os nossos corpos encaixam sem pedir favor. Sem ele saber estou a devorá-lo de uma vez só, a ele, ao sol que se põe, à pele quente e à vontade que esta estrada não tenha fim.






domingo, 12 de fevereiro de 2023

Fins de Inverno

Vou largando as roupas pesadas, uma a uma. Arrepio-me porque lá fora faz frio e eu também tenho, ainda, coisas de gelo por dentro. Mas vou largando, peça a peça e isso torna-me mais leve.
A certeza de que depois ficarei melhor ajuda a esquecer os arrepios. A vontade de voltar à força sem fim, aos risos soltos e transparentes e às palavras que saem sem pensar, também ajuda. Não quero voltar à energia inesgotável: aprendi que também tenho que saber parar.
Assim, pé ante pé, ligeira mas segura, faço a estrada. Camada a camada vou deixando um estranho caminho enrodilhado pelo chão, que conta uma história, aquela de onde vim e para onde vou.
Já sei que tenho que respirar, que tenho que fechar os olhos e sossegar, que às vezes terei que deixar o tempo em suspenso e já sei que não preciso ter ninguém à minha espera. Ajuda se tiver a tua mão na minha, mas também já sei fazer o caminho sozinha.
Nestes dias frios, escuros e sem muita história, tenho sempre a ponta do nariz fria. Não sei porquê, mas assim é. Antes eram as mãos geladas; adorava entrar em camisolas alheias (dos meus!) com os dedos feitos cubos de gelo e senti-los arrepiar. Agora quanto muito esfrego a ponta do nariz nos meus amorzinhos, só para vê-los sorrir e sentir em todos os mais ínfimos poros o quanto somos uns dos outros.

Não tarda chega a Primavera e bem sei que será mais fácil deixar-me quase nua, largar o que ainda prende e pesa. Já pouco, bem pouco quando olho para trás e vejo o que já lá ficou pelo chão. Sorrio.

Agora já sei que o que me disseste não era só circunstância, sinto-o bem dentro de mim e sei que é verdade escrita no tempo: «Tudo passa, tudo passa meu amor».





sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Dó Maior

Ando aqui em semi-círculos. Meia volta para a direita, outra meia para a esquerda. Podia ser uma dança, coisa ritmada e boa, mas nem por isso. Ando a ver se me encontro. Acho que é isso, mas leve e pairante, sem nada das agruras que andaram comigo lá atrás.

Por acaso é verdade, tenho saudades de dançar. Também tenho saudades de cantar. De subir a um palco toda ligeirinha e aproveitar só o instante.
Também podia ser só cantar nas aulas com a Professora Cristina, toda ela espaçosa, em corpo e presença, a chamar-me os piores nomes quando teimava em esquecer-me do último Dó nas escalas - o que acontecia sempre..
Subia as escadas do prediozinho em Campo de Ourique com um nó no estômago: eram nervos e era responsabilidade. A Professora Cristina cantou com a Callas, foi nome primeiro da ópera nacional. (Até hoje acho que só pode ter-me aceite como aluna aqueles dois anos por alguma necessidade mais prática.)
A loura rapariga de grandes olhos azuis e voz cristalina que se cruzava comigo descendo as escadas cantarolando, era ser etéreo e carregado de um talento a que eu, ingenuamente, aspirava. Mais tarde consegui colar-lhe um nome quando a vi anunciada em palcos por aí fora (a quem interesse: era a Marta Hugon).
Eu chegava sempre atrasada, depois de voltas infinitas para estacionar, e naquela hora esvaziava-me de todas as notas, tons e sobre-tons acompanhada pelo piano firme da Professora Cristina. Descia de fugida para regressar ao trabalho -- ia sempre leve, feliz e catarolante. Não interessa se não serviu de nada, se rapidamente me resumi à minha insignificância vocal. Conheci Cristina de Castro, a sua sala encafuada de livros, vinis, bibelots, almofadas e sei lá que mais e fui muito feliz em Campo de Ourique, mesmo que numa corrida, mesmo que perdida entre o riso e a nervoseira por cada palavrão que me era destinado - e merecido, pois claro - por aquela senhora incrível com as histórias mais geniais.
O palco agora é a pedido das minhas crianças. Ainda consigo chegar ao Dó mais agudo, tímpanos a vibrar e ar quase a faltar, mas faltam-me as minhas horas de almoço num pulinho a casa da Professora, onde o mundo ficava em suspenso por 60 minutos enquanto aprendia a ser simplesmente afinada e feliz.

(Descobri agora que a Professora Cristina morreu dois anos depois da minha última aula. Uma memória dela aqui: https://www.youtube.com/watch?v=UV3DIb9PUKw )


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Passo a Passo

 1,2, 3 aqui vou eu outra vez.

Não é que me custe, nem que não me custe, não é que goste, ou que deixe de gostar. Desta vez mais serena, com menos pressas, menos receios. Os tempos são outros, os anos passaram, os miúdos cresceram e tudo isso torna o caminho mais ligeiro.

Tal como os amigos-família que me levam pela mão e sei que estão aqui para o que der e vier. O que der e vier, o que vier e der. Vou juntando-os nos passos dos meus dias. Os que vêm de trás, os que vêm de sempre, os de há pouco e os de agora, todos unos, todos cheios de amor. O afecto é o que mais interessa, já dizia a Madrinha. Por eles corro sempre que chamarem, por mim sei que estão ali à distância de um Ai. Não são assim tão poucos, nem são assim tantos e são todos muito, muito bons. Homens e mulheres,, mais novos, mais velhos, com muito, com pouco, mas o que os une - que nos une - é a verdade à flor da pele. Tudo à flor da pele. Se for preciso, brutos como tudo, brutos a fazer doer, mas com o colo sempre pronto.

E de cada vez que me atrevo a contar um passo que esteja a preparar - louca, louca, louca, oiço lá do fundo de mim - o que tenho deles é um vai, segue, tens mesmo é que ir, viver, fazer. Há lá maior amor?

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Fio de Luz

Hoje, como sempre, e mil vezes mil vezes mil, bato à porta trancada Espero mais que um vazio

Colhida a um canto,

luz presa num fio,

Ela quebrou o encanto

espreitou à janela, riu


tocou a mão estendida,

cobriu-se num segundo,

Minha linda bela adormecida

Esquecida deste mundo


Vem, anda:


Na minha pele

No teu beijo

No meu colo

Num desejo 


Voltas a ser mulher 

- para mim sempre tudo - 

Encontramo-nos no prazer,

No fundo do suspiro, mudo


terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Bandeira verde

Vivíamos nos silêncios, agora somos só leveza.
Ainda não consigo perceber esta mágica: precisamos ir ao fundo, tocar os pés no chão e ganhar impulso para voltar a subir. E quando subimos vamos largando pesos e silêncios e dores e manias e medos e fantasmas, para chegar à tona nesta ligeireza bem feliz.
Foi um médico quem me ensinou a lição. Já se sabe - e aqui confessei - que não me demoro em palavras sobre mim, nem nas boas, nem nas más, nem nas assim-assim, mas essas encaixaram no puzzle absolutamente imperfeito que eu era há uma década.
Primeiro eu, depois ele. Entretanto alguns anos de profundos silêncios, alguns gritos sentidos, algumas histórias com princípio e meio, mas pouco fim.
Dia após dia tenho-o ouvido, maravilhada com a ligeireza com que agora se apresenta. Foram-se os silêncios e foi-se aquele peso todo que se nos entranhava na pele e nos sentidos: eramos (era?) só meio-vivos, emparedados em silêncios infinitos.
Tocámos com a ponta dos pés no fundo, primeiro eu, depois ele, e agora flutuamos à tona, sem saber onde estão as linhas, as fronteiras, os limites. Já aqui contei: o meu melhor sonho sou eu deitada no mar, sem saber onde começo e muito menos onde acabo, leve, leve, sem fim.

Pensava que vinha aqui contar histórias, mas afinal estou só a procurar o embalo. Por enquanto é o que temos: diário de bordo, sem data, sem nomes, sem jeito. De mim, para mim.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Uma forma de Assim

Chegava a casa feliz. A Dona Leonor dava-nos, a mim e ao meu irmão, uma vianinha carregada de manteiga e um copo de leite. Naquele tempo ainda não comíamos iogurtes a metro como agora, nem pão escuro com cereais ou barras de coisas integrais.  Devorado o lanche, desaparecia para o meu canto. A mãe deixara sempre um espaço entre o sofá encarnado e a grande janela que dava para a varanda. Nos dias de calor havia uma fresta aberta e o cortinado branco dançava incansável. Se há coisa que me faz sorrir é lembrar do bem que sabia deitar-me atrás do sofá, sentir a madeira fria e dura na cara, nas palmas das mãos e imediatamente adormecer. Memória boa que dá vontade de voltar para trás do sofá, tantas décadas depois. (Não será por acaso que, nos momentos mais doídos, é no chão que me deixo a chorar. Choro muito, muito, faço tudo para chorar o mais que tenha por dentro. Esvazio-me, para depois recomeçar. Esvaziar e voltar a andar. Já há muito que não acontece e ainda bem e que assim continue e bate três vezes na madeira e não se fala mais nisso)

Muitas vezes acordava já no escuro e não havia nada melhor.  Corria para o quarto da mãe. Tinha que ser depressa antes que ela chegasse e descobrisse o segredo. O camiseiro de madeira escura escondia mil vestidos de princesas. Leves, com folhos, fitinhas e laços. Os preferidos: um branco etéreo com uma fita azul clara no decote e um rosa com folhos de cima a baixo. Nunca vira a mãe com aquelas camisas de dormir e ainda bem porque, assim, vestiam-me de histórias de meninas e fadinhas sem ninguém desconfiar.

Não sei porque não tenho uma camisa de dormir de folhos e fitinhas. Não sei porque deixei de escorregar para o chão numa sesta fresca enquanto o cortinado branco da minha sala dança sobre mim. Não sei porque já não como vianhinas carregadas de manteiga, nem porque os dias acabam mal estão a começar. Estou aqui mas ainda lá estou -- também. 

Fecha os olhos e ouve-me baixinho no canto da tua orelha: 

Gostava que te deitasses comigo num chão de madeira fresca, de mãos dadas, talvez só mesmo as pontas dos dedos a tocarem-se, talvez mesmo sem uma palavra sequer. Vais queixar-te das costas, do tempo que já passou, do frio na pele, mas eu não quero saber, porque volto a ser pequenina, ao teu lado. Assim.


domingo, 5 de fevereiro de 2023

Amanhecer

Demoro-me nos lençóis quentes da noite bem dormida.
Se me desvio um milímetro, arrepio de frio. A cama está vazia de outro que não eu e até me sabe bem assim.
Deixo os dias começarem devagar, estico uma e outra parte de mim, à vez. Procuro as vozes das crianças; às vezes estão, outras não.
Enquanto desperto devagarinho da noite espreito se o dia já chegou. Entra luz pelas falhas do estore e assim sei que está na hora. Na hora de começar.
E está mesmo na hora de começar, acordar, de voltar a mim. No fundo, sair do casulo em que me enrolei em cura demorada.
Aos poucos, com vagar e sem tempo a contar, voltam as vontades nas pontas dos dedos e à flor da pele. Mais regradas: quando caímos não queremos voltar ali.

Enche o peito de ar e vai, disseste tu.
Bem sabes que as palavras correm por mim e poucas são as que ficam. Não é arrogância, é falta de tino mesmo. Mas estas guardei-as sem saber -- melhor, sem querer.

Vamos.

Menina, toca a acordar.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Regresso(s)

Voltamos?

Não sei, diz-me tu.

És sempre isto. Peço respostas, dás-me reflexões.

E, ainda assim, aqui estamos. Já viste?

Sim, bem sei. És vício, sal na ferida que não deixa de arder.

Já me disseste coisas mais doces.

Já fui mais doce.

Não penses que me enganas. Ainda estás aí.

Seja.

Não fiques assim. Sabes que isso faz doer.

É escudo, é capa de gelo. Por dentro eu, a mesma.

Por isso te espero. Venham dias, meses, anos. Vou estar sempre aqui.

Sim, sei que estás. Mas não como eu queria.

Não se pode ter tudo.

Anos a ouvir essa conversa.

É verdade.

Não quero saber.

Não chega já disto? Minha querida, meu desassossego, minha perdição em flor: anda, chega-te a mim.

Aqui estou.



(De volta!)


quinta-feira, 9 de maio de 2019

Luzes da Ribalta (História pedida por UmJeitoManso.blog inspirada em "Plural: eis o que sou mas não sei explicar" de Casimiro de Brito)

Se um dia fores ter comigo ao camarim, deixo-te pintar os lábios vermelhos, reflectida naquele espelho de mil luzes qual filme de Hollywood.
Deixamos os outros no palco, em ensaios e conversas indecifráveis, e vamos as duas lá atrás, fazer de conta que temos outra vez 10 anos e brincamos às raparigas dos filmes, como nos tempos de escola.
Empresto-te a minha escova prateada, o perfume mais que intenso, os brilhos dos olhos e até o rouge carmim.
Entrego-te as minhas lantejoulas, as plumas rosa para o cabelo, os colares de voltas para o pescoço. Vamos rir-nos porque, de repente, estamos outra vez no pátio da escola, o banco como palco e os nossos sonhos pelo ar.
Agora empoleira-te nestes saltos que tanto amaldiçoo, que me deixam perfeita sob os holofotes e fumos de cheiro, mas me pontapeiam as cruzes e os rins depois dos primeiros minutos de espectáculo.
Sabes que, na verdade, isto é tudo um show, um faz de conta que inebria nos princípios, faz-nos levitar e acreditar que somos infinitos, para - muita estrada e música depois -, nos esvaziar em cada regresso a casa.
No palco sou plural, sou o que sou sem saber explicar.
Vá, está quase na hora. Toma as luvas de cetim rosa, as pulseiras que fingem brilhar e um último retoque ao espelho. Estás perfeita.
Sim, podes até fazer de mim hoje. Sobes ao palco, assim, toda disfarçada desta que fiquei eu, enches-te de sorrisos e olhares sensuais e deixas que a música entre em ti.
Depois é só deixares-te ir. Confia em mim, fácil, fácil.
Eu fico por aqui, neste velho camarim com um espelho em que se faz dia, espero por ti, pacientemente até que tudo acabe, os aplausos, os autógrafos, os abraços festivos, até que aqui chegues. Liberto-te docemente de todas essas máscaras de mil cores, pego-te na mão e vamos sozinhas para casa.

Eu regressada a mim.


quarta-feira, 8 de maio de 2019

Amor Clandestino (história pedida por Anónimo, com este título)

Mão na pele
e pele na mão
A boca no canto
em pura paixão

Perna que se enrola
no corpo desvairado
Peito que se cola
em jeito consolado

Suspiro suado
na ponta dos dedos
Ais que se consomem
em todos os segredos

Arrepio que ferve
de dentro para fora
na curva que serve
o tempo que demora

Aquece e queima
numa dança sem lei
É vontade que teima
E ainda nem comecei...

terça-feira, 7 de maio de 2019

A minha musa teve sempre vários corpos (História pedida por UmJeitoManso.blog inspirada pela frase de Casimiro de Brito)

«Ai Rita quando for grande quero ser como tu!
Oh filha, mas tu já estás nos 40, de que estás a espera?»
 
Brevíssimo silêncio, mesmo à (minha) Rita.

«Além disso, que grande coisa essa de ser como eu.


Sim, quero tanto ser como tu, com essa largueza de pensamento, esse dom infinito com as palavras, os
pensamentos, as ideias, tudo de uma inteligência e de uma finesse sem igual. 


Olha, assim quase que me convences.»


Recosta-se no cadeirão de verga, almofadas verde-seco, usado, cheio de histórias sensuais, debaixo deste alpendre carregado de flores e romantismo. Os cabelos loiros enjeitados num desatino e aquela gargalhada rouca que tanto amo:

«Não sei se não serás mesmo mais do que eu minha querida.»


Com a Rita é assim, nunca sei se diz estas doçuras para agradar-me ou se aquilo lhe vem de dentro. Certo é que me sabe bem e, quando estou perto da Rita, encontro-me.

Gosto quando me conta das histórias que está a escrever, das que tem por escrever e das que me inventa. 

«Na verdade, a questão é que não sei se quero ser grande. Gosto de colo e de mimo, preciso de festas na cabeça e de alguém que me leve pela mão. E tu Rita não és nada disso, és rochedo e vendaval desembestado, és senhora de ti e do teu trono, do teu mundo. És inspiração e respiração pausada. E
 eu gostava tanto de ter isso em mim.»

Ela fuma, longas baforadas sexys e redondas, eu pego no meu caderno inspirado e recomeço a escrever. Foram muitos dias, meses e mundos longe das palavras. Agora ela trouxe-me de volta, qual musa inspiradora distante e etérea que me faz crescer.

A minha musa teve sempre vários corpos e hoje consigo nomeá-los a todos. Chego aqui com esta certeza: a minha musa é o amor, nos seus vários feitios e disfarces. Não podia ser melhor... uma musa sem tempo-fim, infinita e plena que me dá a mão sempre que me dispo do mundo e a deixo, assim, chegar de rompante e sem aviso, bem como eu gosto.



(História que casou este regresso com o pedido inspirado da UJM - e com a grande escritora portuguesa que tanto admiro... adivinham quem?)

domingo, 5 de maio de 2019

No Forno

Pois que a UmJeitoManso me desafiou, de várias formas e feitios e a sua história está já no forno...

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Estou de volta!

Ainda terei alguém desse lado?
Tanto tempo, tanta vida, tanto mundo, tantas histórias depois, regresso a esta minha casa. A vontade de escrever e um tempo mais benevolente deram as mãos e trouxeram-me de volta.
Assim, regresso ao tempo das Histórias de Nós, pedidas por vós, ficando aqui eu na minha janela à espera que me desafiem, como antes, com uma palavra, uma frase, um título, uma imagem, o que vos aprouver, para eu devolver, em jeito de agradecimento, uma história.
Até já.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Bom dia

Há um momento em que desaparecem os limites entre a tua pele e a minha e é nesse momento que deixo de saber se sou eu, se tu, quem se prende em mim. Há um momento, mágico, em que os teus dedos entrelaçados nos meus deixam de ser teus para serem meus e os meus, teus e nos deixamos ficar assim, sem tempo para acabar e em que o tempo deixa de contar. Há um momento em que as nossas respirações entram em unissono, rítmico, igual, e em que o meu sorriso se encontra no teu de menino adormecido - a sonhar sonhos bons. Gosto de entreabrir os olhos para espreitar-te assim, de sorriso leve, doce, que vem lá do fundo de ti. Gosto de todos os teus sorrisos quando estás de olhos postos em mim, mas gosto ainda mais do teu sorriso adormecido, abandonado, esquecido das correrias e contra-tempos, só feliz por estares aqui. Há um momento, que se quer eterno, em que somos iguais, almas gémeas reencontradas um no outro, corpos abandonados dos dias e em que resta apenas a essência do nós que somos um perto do outro. Eu e tu, nestes momentos nossos, somos mais-que-perfeitos, somos um.

sábado, 24 de outubro de 2015

Mais-que-perfeito

Estamos no topo da montanha, no topo do meu mundo. Encho o peito deste ar transparente e doce, dou uma volta sobre mim - braços bem abertos, claro, há que abraçar estes momentos encantados  – tenho vontade de cantar bem alto e tenho vontade deste silêncio cristalino. O verde nas rochas cinza, brutas, agrestes, esconde um bocadinho destes que somos nós. Estamos enleados na natureza e isto é tão bom assim.

«Procura a minha mão», penso para mim. E os teus dedos tocam os meus. «Puxa-me para ti», penso. E num instante estou encaixada no teu peito. «Toca-me levemente como só tu sabes nestes cabelos negros impossíveis», penso. E logo a tua boca beija a curva da minha nuca.

Vamos ser sempre assim, digo-te num segredo, a voz esmagada pela plenitude daquele sítio, daquele momento. Nosso. Dizes-me que sim com um beijo demorado na minha boca. Gosto quando demoras os teus lábios nos meus. Devias fazê-lo mais vezes, mesmo entre as tuas pressas e correrias. O teu sabor no meu-que-é-teu-que-é-meu. Aquela coisa do mais-que-perfeito, que nos oferecemos um ao outro desde o nosso princípio.

Devíamos começar a descida, vamos demorar e os outros esperam-nos lá em baixo, naquelas ânsias de voltar. Sempre todos a quererem voltar: dão uma espreitadela, suspendem a respiração e depois toca a correr de volta para os dias iguais. Mas eu só quero ficar, parar, respirar, sentir. E estar contigo assim na minha pele.

Podia fazer aqui uma casinha, um T zero ínfimo, só assim um tecto para abrigar-nos nos dias de chuva ou do sol fervente do Verão que queima, nestas terras que tanta falta me fazem lá no nosso mundo de todos os dias. Pois era, fazíamos assim um abrigo e vivíamos aqui em contemplação, suspensos, alimentando-nos desta pureza toda, desta transparência. E do nosso amor.

«Vamos».

Trazes-me de volta ao que deve ser, à normalidade, lembras-me que os outros estão lá em baixo à nossa espera, que ninguém vive de amor e do ar e da transcendência e de frios bons na beira da pele. Nem isso pode ser assim só por termos a sorte de ter a mão na mão um do outro.

Sorris e levas-me contigo, cheio de felicidade dentro de ti.

«Podíamos casar-nos aqui». Saiu-me e tu gostaste. Eu que sempre te adiei esse dia, agora podia ser já. «Agora podia ser já; gosto disso», dizes-me tu como tantas vezes dizes do que me sai para ti.

A descida é rápida contigo a guiar-me, eu vou perdendo a minha leveza, vou ganhando o peso dos dias de todos os dias, do que tem de ser, do que deve ser e já não sou aquele ser alado em que me torno quando estou lá em cima, no meu mundo.

É esse mundo que quero agora e já que passe a ser nosso, o nosso mundo onde voltamos toda e cada vez que os teus lábios se demoram nos meus e a tua pele passa a ser a minha. Queria, agora e já e para sempre, assim.



quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Aurora

Uma menina pequenina, pequenina, rodopiava sobre si mesma e cantarolava uma música triste. Mas sorria e até lhe podia ver os olhos a brilhar. Era uma menina doce, de longas tranças negras, vestido de folhos encarnados a encher os ombros e o fim da saia que rodava e rodava sem parar.

Esta menina, pequenina, tão pequenina estava sozinha e nem dava pelo tempo passar. As mãozinhas abertas deixavam o vento bom correr entre os dedos e a pele arrepiava-se em minúsculas bolinhas com o frio que lhe enchia a barriga e o peito. A menina estava sozinha mas estava feliz. Era o sabor da liberdade que tinha na boca, nos olhos, na pele e se rodopiava sem parar era porque nada mais lhe apetecia fazer. Só assim a sentir o bom que é ser feliz. E solta, livre, a voar.

Parámos todos a olhar, quietos, mudos, sem percebermos bem ao que vinha e porque ali se demorava; não sabíamos se devíamos perguntar-lhe o que quer que fosse ou agarrar-lhe a mãozinha rosada para ver se a fazíamos sossegar. A respiração presa, uma vontade sem vontade de a fazer parar.

A menina pequenina, mesmo pequenina, sozinha, tão sozinha nem via os tantos que agora a rodeavam, sem saberem o que fazer ou pensar, enleados naquela canção triste e doce, naquele rodopiar sem parar, no encarnado dos folhos, nas perninhas roliças incansáveis, no imenso sorriso que a enchia de flores e coisas boas por dentro.

Um a um fomos desviando o olhar, seguindo o caminho, não querendo pensar se ela ficaria sozinha por mais um minuto ou uma vida, mas com uma inveja a crescer-nos por dentro, com vontade daquele sentimento puro e leve, com vontade de cantar, de dançar ou mesmo com um mundo inteiro na palma da mão.

Estou aqui no meu canto e lembro-me daquela menina encantada, sozinha no meio dos crescidos que a olhavam admirados e sorrio, sorrio mesmo de dentro para fora e do princípio ao fim de mim, porque agora percebi: ela sou eu.


segunda-feira, 13 de abril de 2015

Na Rua das Flores

Eram doces as horas que passava longe de ti, depois de ti. Passo a explicar: longas eram as horas em que te esperava, colada à janela, os dedos gelados no vidro frio, sustendo a respiração à espera de te ver chegar. Se o tempo parava enquanto ali não estavas, certo é que desaparecia quando estava junto a ti. Ainda agora chegavas e já era tempo de ires. Mesmo que tivesses estado em nós por uma manhã, uma hora, ou um mês. Mas depois doces eram as horas em que tinha ainda o teu cheiro no meu braço e o teu sabor a sal cá por dentro de mim. Visceral. Tu eras visceral em mim. Toda eu sorria, toda eu me demorava a lembrar as palavras e os gestos. Era a doçura de lembrar o bom de estarmos feitos um. Não custavam as horas de volta da roupa, o ferro a queimar, o cabelo colado na testa, o cheiro a suor que também era ainda um bocadinho teu. Não custava a senhora lá dentro a pedir os chás, nem os meninos que me puxavam em gritos, nem sequer a má cara do senhor. É verdade que os dias em que tardavas a aparecer custavam um bocadinho mais, a respiração sustinha-se e ansiava pelo teu recado. «Hoje estou aí». Sempre assim, com essa tua letra desenhada e tombada, que enchia a folha branca de papel que me cheirava a ti. O miúdo dos jornais trazia-me o teu recado enrolado no bolso e ia-se a rir, não sei se do meu sorriso, se da moeda gorda que acabava de ganhar. Nesses dias deixava a porta dos fundos só no trinco, tu puxavas o cordelinho e deitavas-te de mansinho ao meu lado, na minha cama que era nossa e assim deixava de ter princípio-fim. Os senhores nunca punham pé no meu quarto e por isso podias por ali ficar o que quisesses. O que tu quisesses. Se fosse por mim chegavas e não ias nunca mais. Nunca te fiz uma pergunta, nunca pedi tempo, nunca te disse mais do que o bom que era ter-te para mim. Naquele dia havia festa lá na rua dos meus pais. Contei-te dos fogos e das sardinhas, das minhas gentes e do tanto que te queria levar. Contei-te dos miúdos e dos berlindes, das avós e mezinhas, da casa que tinha como minha e que esperava por nós. Sobressalto. Teu. E um silêncio negro de chumbo. Mas nesse dia eu não era aquela eu de todos os dias contigo, naquele dia eu estava feliz demais, tão demais, porque tu tardaste na minha cama, não corrias… e porque naquele dia me trouxeste uma rosa encarnada. E eu ia falando de uma vida para nós enquanto olhava aquela rosa encarnada tão bonita na minha cómoda escura, o teu peito encostado nas minhas costas e eu desenhando novos dias para nós enquanto as minhas mãos dançavam no ar, felizes na antecipação de uma vida para os dois. Uma noite disseste-me: gosto de ver as tuas mãos assim, a contarem as tuas histórias. Mas nesse dia não disseste nada. Acho que suspiraste, assim uma espécie de um respirar triste e sem volta. Saíste da cama e eu a falar, a falar dos dias em que esperava por ti, dos dias em nos lembrava, do quanto te queria em mim para sempre, sim sempre e sempre e sempre e nem ouvi as calças a esconderem o teu corpo, nem o passo arrastado das tuas botas pesadas, nem sequer a porta a bater. Sem volta. Continuei a falar, a dizer tudo de nós, o que calara por tanto tempo e já só falava e enchia o quarto de palavras já sem sentido, de palavras já fora de prazo e com pouco de mim, palavras que ia desenhando no ar como faço desde miúda. Enchi aquela rosa de lágrimas e esvaziei-me ali. Em confissão. Nessa noite rodei e bailei sem parar. Os rapazes puxavam-me para dançar e eu leve, infinitamente leve, voava nos seus braços. A rosa encarnada não saiu do meu cabelo e ao fim da noite estava encantada a ver os fogos ao luar.

domingo, 31 de agosto de 2014

Agosto na praia dos Pescadores

Prenderam-me a atenção: ela sentada no barco, arrastado pela areia à força de um tractor velho demais para ainda andar na arte, ele a acompanhar o barco, de sorriso no sorriso dela, a mão pousada sobre a dela, os dois assim sem palavras, só o vento a levar-lhe o cabelo para os olhos - a ela - e a encher-lhe os olhos claros de lágrimas - a ele. À volta a confusão de todos os dias, os gritos possantes, as gargalhadas frondosas, o palavreado que fere os ouvidos dos lisboetas que só ali vão de passeio, a cantoria das mulheres, fortes e cheias, de peito pesado e mãos ligeiras.

O barco baptizado de «Até que Enfim» desliza na areia como num rio espelhado e as redes seguem-nos carregadas de peixe luzidio. Ele segura-a num salto leve e um riso feliz enche a praia. Logo um pescador de voz grossa o chama de chapão, que se deixasse de parvoíces e fosse puxar as redes. Tudo isto bem regado de palavras impossíves de transcrever. O sorriso dela cai devagarinho na areia e o rapaz lá salta para o meio da confusão, tronco nú, queimado e musculado, pele grossa do sol e sal.

(A história deles não ma contaram por palavras, ninguém se abeirou de mim e me disse das suas razões - pena que tenho, porque se há coisa que gosto é que me contem histórias, me encham de sorrisos de outras vidas, me mostrem mundos outros que não o meu - mas a história destes dois fui sabendo nas minhas tardes de Verão na Costa, ali bem perto de casa e ao mesmo tempo tão longe de tudo.)

Susana chegara há pouco para o Agosto em Portugal. A velha história daqueles que fogem da vida difícil à procura de qualquer coisa melhor lá fora. Em França, perfeito cliché, claro está. Ela não tem mais que 20 anos, mas a ele só o sorriso de menino o trai, porque o corpo e o passo pesado dão-lhe duas vezes mais idade. Joaquim. Quim dos Anzóis, como chamam os mais novos ao vê-lo passar com as galochas ensopadas e o cabelo loiro num desalinho. Loiro daquele amarelo queimado pelo sol, rebelde e àspero, tão diferente do cabelo de Susana que liso se cola ao vento, castanho e sem história.

(Agora para conseguirem ver esta história com a luz que eu a vejo, têm que lembrar-se das tardes ventosas deste Agosto, das pessoas fugidias ou enfiadas nos seus chapéus e toalhas, e mesmo da doçura deste Verão que não sufoca e nos deixa mais despertos para as histórias que nos rodeiam. Pelo menos é o que me acontece a mim. Gosto do vento na cara, inspiro-o com força, encho-me e crio reservas desse fresco e caminho ate à pontinha do mar, até estas ondas carregadas dos últimos dias e deixo os salpicos pintarem-me as pernas secas e encherem-me de um arrepio bom.)

À noite há sempre conversa e música ali na casa da Tia Arminda, todos cá fora, cadeiras de plástico, um rádio com música a passar, um dos velhos mais bebido puxa uma das avós para dançar, a risota, a simplicidade dos momentos bons naquelas vidas duras que marcam o corpo e vincam a pele. Joaquim e Susana bem perto um do outro, as mãos que se tocam quando ele lhe passa uma Fanta, o sorriso dela que se esconde do olhar dos avós. Tudo fica ainda mais doce enquanto o sol poisa ao de leve no mar enraivecido.

Estou ali por perto, numa tasca improvisada com chapéus de uma marca qualquer de cerveja, enquanto me derreto num gelado bem doce. A minha companhia momentaneamnte silenciosa deixa-me aproveitar para ouvir a conversa de duas mulheres de cabelo branco revolto e mãos rudes como homens. «Isto já dura há muito, bem sabes. Não te lembras que em miúdos não se largavam? E no dia em que a Suse se foi, gaiata ainda, não tinha mais que uns 12 anitos mal amanhados, ele foi atrás do carro até lá ao cimo da rua, ficou muito tempo parado, a olhar, mãos nos bolsos e nem uma palavra, nem um gesto, nada. E assim se ficou calado, até ao Verão seguinte em que ela veio de férias. E assim tem sido sempre. Este meu neto é de ideias bem feitas, já te digo. Estou farta de avisá-lo para esquecer o raio da moça, vai haver um Verão que já não volta, fica agarrada de vez a um finório lá na França e depois fica-me aqui o rapaz calado para sempre». A outra ri-se «Até parece que não te lembras como era no nosso tempo...o Agosto era sempre uma galhofa, tantas histórias para contar...». Rio-me com elas. E vejo aqueles dois, lá ao fundo, no vão de uma escada, os corpos encostados e as mãos dele a apertarem-na no ar.

No próximo Verão hei-de cá voltar. Em Agosto ninguém me vai tirar a Praia dos Pescadores. Quero saber destes dois e em que fica esta história. Se o barco passar vazio no areal, o Joaquim mudo e orfão do seu sorriso de menino, salto ligeira para o «Até que Enfim» - esquecida dos tantos anos e mundos que nos separam - e dou-lhe o meu melhor sorriso à espera que a sua mão me venha agarrar. Pelo menos, até Agosto acabar.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Regressos

Vá desafiem-me, ponham e disponham de mim, piquem-me, façam-me acordar. Levem-me de volta ao prazer da palavra escrita, da minha imaginação que se deixa ir ao encontro da vossa vontade, das minhas histórias que letra-a-letra nos unem por alguns instantes. Levem-me a inventar-vos um conto, uma ideia, um pequeno começo-meio-fim, levem-me a conhecer-vos sem vos ter ao lado, levem-me para aquele sítio em que sou tão feliz, com uma caneta imaginária na boca, os olhos fechados e um caderno meio cheio apertado no meu colo. Vamos lá, vamos pôr-me à prova, saber se ainda por aqui andam as tantas histórias que me enchem os dias de todos os dias, as histórias de todos nós, os episódios que nos fazem crescer e avançar de novo. Vamos encontrar, uma e outra vez, estas histórias que andam pululando por aqui à minha beira, prontas, prontinhas para saltarem cá para fora. A escrita, mais que um prazer é uma necessidade. Vamos lá.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Físico-Química

Há uma coisa em nós que é só nossa. Ou melhor, há uma coisa em nós que é só minha. Talvez seja também tua, mas nunca me disseste. Se assim for, estaremos perto da perfeição. Há uma coisa em nós que é o nosso sabor. Eu passo a explicar: o meu sabor é o teu e o teu é o meu. Mesmo com os cigarros, os iogurtes de morango, ou as horas de silêncio, ainda assim o meu sabor é o teu. A minha boca encontra-se na tua. O nosso sabor é o meu. E é esse meu sabor que encontro em ti que me faz esquecer - naquele preciso instante do nosso beijo - o tanto que me magoas e me fazes doer. Naquele instante em que o nosso sabor é um só, tudo passa. Claro que depois por qualquer coisa ou por muita coisa, tudo volta a torcer e a doer; mas naquele nosso instante, não. Por isso talvez seja essa a única coisa que faz sentido, que explica e que segura. Esse teu sabor é meu, sabe a nós e sabe a casa. Já me disseste tanto e ainda não me disseste nada. E assim vamos andando, entre abraços que apertam e palavras que doem. Enquanto o teu sabor for o meu, vou continuando. De mãos na cabeça e no coração. A agarrar-te e a afastar-te, num vai-vem que cansa, mas a que estamos condenados. Ao fim deste tempo percebo aquilo que me disseste um dia de um nosso beijo eterno. Eternamente condenados a nós, enquanto o teu sabor me souber ao meu.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Vai ser tão bonito descobrir

Nós havemos de nos ver os dois Ver no que isto dá Ficar um pouco mais a conversar Ter a eternidade para nós Quem sabe jantar Se tu quiseres, pode ser hoje Tem de acontecer, porque tem de ser E o que tem de ser tem muita força E sei que vai ser, porque tem de ser Se é pra acontecer, pois que seja agora Nós havemos ambos de encontrar Um destino qualquer Ou um banquinho bom para sentar Vai ser tão bonito descobrir Que no futuro só Quem decide é a vontade Tem de acontecer, porque tem de ser E o que tem de ser tem muita força E sei que vai ser, porque tem de ser Se é pra acontecer, pois que seja agora Tem de acontecer, porque tem de ser E o que tem de ser tem muita força E sei que vai ser, porque tem de ser Se é pra acontecer, pois que seja agora Que seja agora Que seja agora Se é pra acontecer Pois que seja agora (dos Deolinda)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

In & Out

Há muito tempo que não me ponho bonita para ti. Há muito tempo que não me faço bonita como sei que gostas, que não me arranjo, que não me ponho com o que te faz tremer, que não mostro o melhor de mim. Por fora e por dentro. E durante muito tempo só mostrei o mau, quis mesmo só mostrar-te o pior, o escuro, o difícil. Por dentro e por fora. Para saberes de tudo de mim. Há muito tempo que não te seduzo, que não olho no fundo dos teus olhos com malícia, que não te faço o sorriso quente que sei que te faz desassossegar, que não te digo ao ouvido as palavras que sei que te fazem gemer.
Há muito tempo que não te procuro da mesma forma como te procurava no início de nós, no meio de nós, no que sempre fomos nós. Há muito tempo que não te provoco, que não te tento, que não te quero fazer derreter. De todas as formas; por dentro e por fora. Há muito tempo que não te namoro, que não te procuro assim, que me deixo apenas levar por ti. Agora é o tempo em que me deixo conduzir por ti, sem procurar, forçando-me a ser paciente e a esperar pelo teu tempo. Até chegar, de vez, o nosso tempo. E quando chegar, vou olhar-te bem por dentro, vou encostar a minha boca bem no canto da tua orelha fria, o meu sorriso a chamar-te, a pedir-te, a tentar-te e a sussurrar baixinho «chegou o nosso tempo» enquanto enrolo as minhas pernas nuas em ti.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Para hoje

Para hoje: a lua que mais alta brilha, A curva da Arrábida, o frio que me faz tremer nas tuas mãos e que enche ainda mais o teu abraço de mim. Esta música na noite e dentro de nós (podia até ser, com sorte, - minha - que te convencesse a dançar um slow gelado). Para hoje era assim, só doçura num momento nosso que dura para sempre. As simple as this.

sábado, 16 de novembro de 2013

Noite de cinema (ou talvez não)

O reencontro puro, mesmo que sem pele, mesmo que sem cheiro. Mas o reencontro, finalmente, no que ouviu, no tom, nas palavras, doces como ele. Ela vira-se assim, do avesso, mostra tudo, diz tudo até ao fim e então, finalmente, finalmente, ele volta. Ela sorri toda, flui, torna-se leve por um instante e de olhos bem brilhantes.
Lembra-o do tanto que gosta dele, do difícil que é, da falta da sua boca na dela, dos abraços que faziam deles apenas um.
Agora, só quer que ele não se vá, que fique, assim, sempre. Mas já não tem coragem de pedir. Já não vai pedir mais nada, deixa-se só a acreditar.

(pára a fita e a crú no ecrã: Intervalo)

(grande Lou Reed, a banda sonora perfeita, música linda, linda, linda)
When I think of all the things I've done
and I know that it's only just begun
Those smiling faces, you know I just can't forget 'em
but I love you
When I think of all the things I've seen
and I know that it's only the beginning
You know those smiling faces, I just can't forget 'em but for now, I love you
Just for a little while oh baby, just to see you smile
Just for a little while
When I think of all the things I've done and I know that it's only just begun
Oh, smiling faces, Jesus, you know I can't forget 'em
But for now, I love you right this minute, baby now
I love you at least for now,
I love you

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Black & White Love

Saudades do teu sorriso ao ver-me chegar. Saudades do teu sorriso difícil de chegar. Saudades do teu sorriso nas palavras fáceis. Saudades do teu sorriso raro. Saudades do teu sorriso que é só para mim. Saudades do teu sorriso no meu. Saudades de todos os teus sorrisos.


There are many many crazy things
That will keep me loving you
And with your permission
May I list a few

The way you wear your hat
The way you sip your tea
The memory of all that
No they can't take that away from me

The way your smile just beams
The way you sing off key
The way you haunt my dreams
No they can't take that away from me

We may never never meet again, on that bumpy road to love
But I'll always, always keep the memory of

The way you hold your knife
The way we danced till three
The way you changed my life
No they can't take that away from me

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Mais histórias de princesas

Esta música tem uma história minha. Ele era suíço e estava em Lisboa a estudar por 6 meses. Ficou em casa de um amigo meu, num daqueles programas de intercâmbio europeus, acredito que os primórdios do Erasmus. Ele mais velho que eu 4 ou 5 anos, eu com 19 e com um namorado já há 3 anos (nestas idades, cada mês é um festejo...). Eu e o M., o suíço, rapidamente nos aproximámos e criámos uma grande cumplicidade - porque só eu e o meu namorado falávamos francês, entre o nosso gigante grupo de amigos e o inglês dele era um sofrimento. Ele tinha uma namorada linda, linda, linda na Suíça.
Um mês depois de se ter ido embora - depois de uma despedida abraçada e demorada demais; silenciosa demais - enviou-me um email com esta música. Dizia que o fazia lembrar de mim. Quando somos novos e a começar a viver este mundo dos «crescidos» todas estas coisas fazem muito sentido e marcam muito. Ele dizia que pensava em mim todos os dias, que se eu quisesse voltava, deixava a vida dele, começava uma nova cá, comigo.
Eu sempre fui muito pouco de aventuras, muita contida e certinha (tive que chegar à idade realmente adulta para descobrir o que era a liberdade em todos os sentidos), disse-lhe que não, não fazia sentido, não havia como - apesar de estar fascinada por aquele sorriso de grandes olhos azuis.
Não aconteceu e não era para acontecer; acredito que ele, tal como eu, nunca mais tenha pensado em tal coisa e que tenha ficado apenas como uma lembrança longínqua que faz sorrir.
E porquê isto hoje? Porque às vezes há esta vontade em mim de ser Princesa como nas histórias que leio às minhas crianças, de ser arrebatada e levada «feliz para sempre», vencendo todas as contrariedades e coisas más, ao som de uma música tão doce quanto esta - e porque será que agora a sinto triste? -, que alguém me cantaria baixinho ao ouvido, jurando-me que é mais feliz só por eu existir no seu mundo.


YOUR SONG
It's a little bit funny this feeling inside
I'm not one of those who can easily hide
I don't have much money but boy if I did
I'd buy a big house where we both could live
If I was a sculptor, but then again, no
Or a man who makes potions in a travelling show
I know it's not much but it's the best I can do
My gift is my song and this one's for you
And you can tell everybody this is your song
It may be quite simple but now that it's done
I hope you don't mind
I hope you don't mind that I put down in words
How wonderful life is while you're in the world
I sat on the roof and kicked off the moss
Well a few of the verses well they've got me quite cross
But the sun's been quite kind while I wrote this song
It's for people like you that keep it turned on
So excuse me forgetting but these things I do
You see I've forgotten if they're green or they're blue
Anyway the thing is what I really mean
Yours are the sweetest eyes I've ever seen

terça-feira, 22 de outubro de 2013

The Wedding Day

Nós, num jardim fresco com o rio ali tão perto.
Ou então: Nós, no cimo de uma montanha carregada de verde e o orvalho ainda nas flores.
Ou ainda: Nós, na casa do moinho, todo engalanado e cheio de risos. 

O cenário não interessa.
Nós. A comunhão do que somos, das nossas mãos que não se largam, do nosso olhar um no outro.
A comunhão com os que queremos e nos querem bem.
As palavras que diremos um ao outro e aos que nos rodeiam.
As crianças a puxarem-nos pela roupa, pelo braço, pela ternura que trazemos em cada momento.
O brilho do sol do fim do dia, que tanto tanto tanto gosto. O dourado nos meus cabelos e nos teus olhos.
Música  a encher-nos e ao nosso dia, amigos que cantam e pequeninos que dançam sem parar.
Eu que danço para ti a dança prometida.
Tu que me pegas sem aviso e me levas até um canto esquecido.
Os doces da minha avó na tua boca e a mão da tua mãe a amparar-me o rosto.
As nossas palavras secretas que passam a ser de todos os nossos.
As promessas partilhadas que não têm tempo-fim.
Um dia que se faz de eternidade.
Nós dois para sempre um.
Nós .