Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

sábado, 24 de outubro de 2015

Mais-que-perfeito

Estamos no topo da montanha, no topo do meu mundo. Encho o peito deste ar transparente e doce, dou uma volta sobre mim - braços bem abertos, claro, há que abraçar estes momentos encantados  – tenho vontade de cantar bem alto e tenho vontade deste silêncio cristalino. O verde nas rochas cinza, brutas, agrestes, esconde um bocadinho destes que somos nós. Estamos enleados na natureza e isto é tão bom assim.

«Procura a minha mão», penso para mim. E os teus dedos tocam os meus. «Puxa-me para ti», penso. E num instante estou encaixada no teu peito. «Toca-me levemente como só tu sabes nestes cabelos negros impossíveis», penso. E logo a tua boca beija a curva da minha nuca.

Vamos ser sempre assim, digo-te num segredo, a voz esmagada pela plenitude daquele sítio, daquele momento. Nosso. Dizes-me que sim com um beijo demorado na minha boca. Gosto quando demoras os teus lábios nos meus. Devias fazê-lo mais vezes, mesmo entre as tuas pressas e correrias. O teu sabor no meu-que-é-teu-que-é-meu. Aquela coisa do mais-que-perfeito, que nos oferecemos um ao outro desde o nosso princípio.

Devíamos começar a descida, vamos demorar e os outros esperam-nos lá em baixo, naquelas ânsias de voltar. Sempre todos a quererem voltar: dão uma espreitadela, suspendem a respiração e depois toca a correr de volta para os dias iguais. Mas eu só quero ficar, parar, respirar, sentir. E estar contigo assim na minha pele.

Podia fazer aqui uma casinha, um T zero ínfimo, só assim um tecto para abrigar-nos nos dias de chuva ou do sol fervente do Verão que queima, nestas terras que tanta falta me fazem lá no nosso mundo de todos os dias. Pois era, fazíamos assim um abrigo e vivíamos aqui em contemplação, suspensos, alimentando-nos desta pureza toda, desta transparência. E do nosso amor.

«Vamos».

Trazes-me de volta ao que deve ser, à normalidade, lembras-me que os outros estão lá em baixo à nossa espera, que ninguém vive de amor e do ar e da transcendência e de frios bons na beira da pele. Nem isso pode ser assim só por termos a sorte de ter a mão na mão um do outro.

Sorris e levas-me contigo, cheio de felicidade dentro de ti.

«Podíamos casar-nos aqui». Saiu-me e tu gostaste. Eu que sempre te adiei esse dia, agora podia ser já. «Agora podia ser já; gosto disso», dizes-me tu como tantas vezes dizes do que me sai para ti.

A descida é rápida contigo a guiar-me, eu vou perdendo a minha leveza, vou ganhando o peso dos dias de todos os dias, do que tem de ser, do que deve ser e já não sou aquele ser alado em que me torno quando estou lá em cima, no meu mundo.

É esse mundo que quero agora e já que passe a ser nosso, o nosso mundo onde voltamos toda e cada vez que os teus lábios se demoram nos meus e a tua pele passa a ser a minha. Queria, agora e já e para sempre, assim.



quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Aurora

Uma menina pequenina, pequenina, rodopiava sobre si mesma e cantarolava uma música triste. Mas sorria e até lhe podia ver os olhos a brilhar. Era uma menina doce, de longas tranças negras, vestido de folhos encarnados a encher os ombros e o fim da saia que rodava e rodava sem parar.

Esta menina, pequenina, tão pequenina estava sozinha e nem dava pelo tempo passar. As mãozinhas abertas deixavam o vento bom correr entre os dedos e a pele arrepiava-se em minúsculas bolinhas com o frio que lhe enchia a barriga e o peito. A menina estava sozinha mas estava feliz. Era o sabor da liberdade que tinha na boca, nos olhos, na pele e se rodopiava sem parar era porque nada mais lhe apetecia fazer. Só assim a sentir o bom que é ser feliz. E solta, livre, a voar.

Parámos todos a olhar, quietos, mudos, sem percebermos bem ao que vinha e porque ali se demorava; não sabíamos se devíamos perguntar-lhe o que quer que fosse ou agarrar-lhe a mãozinha rosada para ver se a fazíamos sossegar. A respiração presa, uma vontade sem vontade de a fazer parar.

A menina pequenina, mesmo pequenina, sozinha, tão sozinha nem via os tantos que agora a rodeavam, sem saberem o que fazer ou pensar, enleados naquela canção triste e doce, naquele rodopiar sem parar, no encarnado dos folhos, nas perninhas roliças incansáveis, no imenso sorriso que a enchia de flores e coisas boas por dentro.

Um a um fomos desviando o olhar, seguindo o caminho, não querendo pensar se ela ficaria sozinha por mais um minuto ou uma vida, mas com uma inveja a crescer-nos por dentro, com vontade daquele sentimento puro e leve, com vontade de cantar, de dançar ou mesmo com um mundo inteiro na palma da mão.

Estou aqui no meu canto e lembro-me daquela menina encantada, sozinha no meio dos crescidos que a olhavam admirados e sorrio, sorrio mesmo de dentro para fora e do princípio ao fim de mim, porque agora percebi: ela sou eu.


segunda-feira, 13 de abril de 2015

Na Rua das Flores

Eram doces as horas que passava longe de ti, depois de ti. Passo a explicar: longas eram as horas em que te esperava, colada à janela, os dedos gelados no vidro frio, sustendo a respiração à espera de te ver chegar. Se o tempo parava enquanto ali não estavas, certo é que desaparecia quando estava junto a ti. Ainda agora chegavas e já era tempo de ires. Mesmo que tivesses estado em nós por uma manhã, uma hora, ou um mês. Mas depois doces eram as horas em que tinha ainda o teu cheiro no meu braço e o teu sabor a sal cá por dentro de mim. Visceral. Tu eras visceral em mim. Toda eu sorria, toda eu me demorava a lembrar as palavras e os gestos. Era a doçura de lembrar o bom de estarmos feitos um. Não custavam as horas de volta da roupa, o ferro a queimar, o cabelo colado na testa, o cheiro a suor que também era ainda um bocadinho teu. Não custava a senhora lá dentro a pedir os chás, nem os meninos que me puxavam em gritos, nem sequer a má cara do senhor. É verdade que os dias em que tardavas a aparecer custavam um bocadinho mais, a respiração sustinha-se e ansiava pelo teu recado. «Hoje estou aí». Sempre assim, com essa tua letra desenhada e tombada, que enchia a folha branca de papel que me cheirava a ti. O miúdo dos jornais trazia-me o teu recado enrolado no bolso e ia-se a rir, não sei se do meu sorriso, se da moeda gorda que acabava de ganhar. Nesses dias deixava a porta dos fundos só no trinco, tu puxavas o cordelinho e deitavas-te de mansinho ao meu lado, na minha cama que era nossa e assim deixava de ter princípio-fim. Os senhores nunca punham pé no meu quarto e por isso podias por ali ficar o que quisesses. O que tu quisesses. Se fosse por mim chegavas e não ias nunca mais. Nunca te fiz uma pergunta, nunca pedi tempo, nunca te disse mais do que o bom que era ter-te para mim. Naquele dia havia festa lá na rua dos meus pais. Contei-te dos fogos e das sardinhas, das minhas gentes e do tanto que te queria levar. Contei-te dos miúdos e dos berlindes, das avós e mezinhas, da casa que tinha como minha e que esperava por nós. Sobressalto. Teu. E um silêncio negro de chumbo. Mas nesse dia eu não era aquela eu de todos os dias contigo, naquele dia eu estava feliz demais, tão demais, porque tu tardaste na minha cama, não corrias… e porque naquele dia me trouxeste uma rosa encarnada. E eu ia falando de uma vida para nós enquanto olhava aquela rosa encarnada tão bonita na minha cómoda escura, o teu peito encostado nas minhas costas e eu desenhando novos dias para nós enquanto as minhas mãos dançavam no ar, felizes na antecipação de uma vida para os dois. Uma noite disseste-me: gosto de ver as tuas mãos assim, a contarem as tuas histórias. Mas nesse dia não disseste nada. Acho que suspiraste, assim uma espécie de um respirar triste e sem volta. Saíste da cama e eu a falar, a falar dos dias em que esperava por ti, dos dias em nos lembrava, do quanto te queria em mim para sempre, sim sempre e sempre e sempre e nem ouvi as calças a esconderem o teu corpo, nem o passo arrastado das tuas botas pesadas, nem sequer a porta a bater. Sem volta. Continuei a falar, a dizer tudo de nós, o que calara por tanto tempo e já só falava e enchia o quarto de palavras já sem sentido, de palavras já fora de prazo e com pouco de mim, palavras que ia desenhando no ar como faço desde miúda. Enchi aquela rosa de lágrimas e esvaziei-me ali. Em confissão. Nessa noite rodei e bailei sem parar. Os rapazes puxavam-me para dançar e eu leve, infinitamente leve, voava nos seus braços. A rosa encarnada não saiu do meu cabelo e ao fim da noite estava encantada a ver os fogos ao luar.