Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

domingo, 30 de outubro de 2011

Conversa de amigos

- Fugiu-me da mão e quando tentei apanhá-la já ia longe.
- Tens a certeza que foi assim?
- Então, se te estou a dizer... Bem que a chamei, gritei, implorei até.. E ela nada. Já não queria saber de mim, já ia com o vento, já se desprendia na chuva.
- Então e agora?
- Agora sei lá eu que vai ser de mim, assim, sem amparo nem razão, assim tolhido e perdido nas madrugadas, assim sem a mão dela na minha ao adormecer.
- Mas sabes porque é que ela se te desapareceu?
- Vá-se lá saber, ela também sempre foi um bocadinho assim, de inconstâncias e desaparecimentos. Mas é que desta vez foi pior, desta vez não volta, desta vez ja não a vejo mais. Nunca mais.
- E para onde será que ela se foi?
- Ai isso sei eu bem, isso eu sei das tantas vezes que me avisou, no meio daquela inundação toda de lágrimas, cada vez que nos perdíamos no meio do meio dos nossos dias, quando já nem nos conhecíamos, sabes? Ela bem me avisou que um dia se ia, que um dia me esquecia e que se ia nascer do princípio, à beira da vida dos outros que sabem o que é isso de ser feliz.
- Mas onde é isso exactamente?
- Ai, aí já não te sei responder. Nunca conheci ninguém que seja mais feliz do que eu sou sempre e cada uma das vezes que a minha mão toca a dela.

sábado, 29 de outubro de 2011

Arrumador-a-Dias

A príncípio olhava-o com desconfiança e dava mais três voltas se preciso fosse, só para não ter que parar o carro nos seus domínios. Incomodava-me o «conceito», incomodava-me a persistência do «ó vizinha não quer um lugarzinho?», incomodava-me o ar escanzelado, a barba por fazer, a roupa de côr indefinida, o olhar sombrio. O cheiro a tinto. E este incómodo tem um só nome: preconceito.

Em desespero de causa, por algumas vezes lá cedi a ficar no «lugarzinho» e atirar uma moeda com medo de tocar-lhe. Sim, porque isto vá lá saber-se que doenças, que bichezas e que caminhos já andaram por aquelas mãos.

Mas então, e não me perguntem porquê porque não faço a mais ínfima das ideias, lá comecei a dar por mim todos os dias a recorrer aos prestáveis, incansáveis e indispensáveis serviços do Xico, que é afinal quem manda na rua do hospital. Todos lhe falam, todos o cumprimentam. Há inclusivamente quem lhe deixe as chaves do carro o dia inteiro e ele lá vai fazendo perfeitos malabarismos circenses, em ruas impossíveis e com a polícia à espreita.

Ultimamente saía-se sempre com esta: «Ó Dótora, pode deixar aqui sossegadinha que Eles hoje não vêm cá, garanto-lhe.» Páro para pensar quem serão os Eles a que se refere com tanta solenidade e lembro-me dos senhores da Emel que de há uns meses para cá se entretêm a multar todo e qualquer menos avisado prevaricador. E respondo-lhe «Tem a certeza? Não me apetece nada mais uma multa..» «Ó Dótora, no dia em que não acreditar na minha palavra, deixa de olhar-me na cara». Sorrio, sem saber bem como reagir a tal sentença. E confio.

No outro dia chovia um perfeito dilúvio. O Xico lá me arranjou lugar. Baixei a janela, dei-lhe a prestação do dia e ele lá se foi sorridente debaixo do chapéu de chuva. E eu ali enfiada no carro, vidros embaciados, à espera que a chuva amainasse porque não há um chapéu que resista nas minhas mãos - sou o perfeito triângulo das bermudas das sombrinhas. Como já estava atrasada, decidi aventurar-me, encolhida em mim mesma, colada às paredes. E lá aparece o Xico, todo solícito: «O Dótora, mas então porque é que não me pediu boleia? Eu estava ali a a pensar, Mas então a criatura não sai do carro?, palavra de honra que estava - ai, desculpe, a Dótora criatura  - mas para quê isso Dótora, então a gente não estamos aqui uns para os outros? Ora essa».

E eu sorrio, contente porque ainda há cavalheiros.
Os porteiros do hospital olham irónicos para nós e comentam «Este sabe-a toda». E sabe mesmo.

Até dá pena vê-lo desperdiçado em tão mísero míster. Um dia demorei-me com ele. A minha mão lavada de preconceitos, apertou a sua. «Xico, porque andas nesta vida? O que se passa? Deixa-me ajudar-te». O sorriso dele fechou-se. «Ó Dótora deixe-se disso, não se atrase mas é» Eu insistindo, «Xico, pode ser que te consiga ajudar, conta-me a tua história». «A minha história é só minha» atirou-me de olhar cerrado, enquanto me voltava as costas.

Nos dias seguintes deixei de o ver. Já voltou há mais de um mês. Nunca mais me arranjou lugar e ainda ontem cheguei toda encharcada ao 5ºandar. 

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

História pedida 15 (por a Matéria dos Livros, filme de Joaquin Cortes): Dancing Days

O passo ritmado no palco. O som oco e fundo da madeira. Tum, tum tum. Seco, firme, preciso. O meu corpo no teu corpo. Escorregamos um no outro. Não: deslizamos. A música somos nós; a dança, o nosso respirar. Tum, tum tum. A tua mão na minha cintura; puxas-me para ti e eu entrego-me sem pedir mais nada.

A minha mão ampara o teu cabelo negro. Molhado. Colamo-nos, as minhas costas no teu peito, as minhas curvas nas tuas. E deslizamos batendo com força no chão. Tum, tum tum. A tua boca no canto do meu pescoço, a minha mão que cai no teu ombro.

Não respiro, não respiras. Tudo isto num só folego. Tum, tum tum.

A música pára, mas nós não. Ainda encaixados e num suspiro, guias-me para trás do palco. Não queres saber dos aplausos, nem dos encores. Finalmente tens-me tua e és só meu. O teu peito nu encontra a minha boca desgovernada. Os folhos vermelhos da minha saia sobem até ao decote, enquanto me enrolas uma perna em ti. Em cena, fora de cena. Os teus olhos dentro de mim. As guitarras recomeçam, esperam por nós. Perdemo-nos um no outro, sem um Ai. O palco espera-nos, eis-nos de volta. Molhados, cansados, consolados.

Antes a tua dança era dorida. Séria. Crispada. A pedir mais da vida. Agora que me encontraste dançamos assim. Só para nós, só a sentir. Sem querer saber se temos palco ou não. O teu olhar já não está cerrado. O teu olhar agora perde-se na música do meu ventre. O teu corpo na dança do meu. Só quero ficar para sempre assim. A dançar apaixonada e tu de sorriso pendurado em mim.


sábado, 22 de outubro de 2011

Canção de embalar

O meu mundo é pequenino.
Tem mãos pequeninas, pés pequeninos e dentinhos pequeninos. Mas tem os sorrisos e as gargalhadas maiores do mundo. Do mundo dos crescidos, quero eu dizer.
O meu mundo é doce e quente. É como o colo mais querido, a casa mais desejada.
O meu mundo gira à minha volta noite e dia, dia e noite e todos os dias me diz o quanto gosta de mim. Mesmo sem precisar de palavras.
O meu mundo é mágico. Dá-me forças desconhecidas, enche-me de alegria nos dias mais tristes. Faz de mim o que não sabia ser e encontra-me sempre que me descubro perdida.
O meu mundo são os meus meninos, que me olham numa transparência sem fim, que me agarram a mão a sorrir, que me levam ao princípio de mim.
O meu mundo é grande, é enorme, nele cabe tudo o que há de bom.
Estão a ouvir a música que o meu mundo tem? Sou eu com os meus meninos a cantar alto e bom som.
O meu mundo é infinitamente feliz. O meu mundo é meu.

Podem espreitar um bocadinho, gostamos de visitas inesperadas. Mas depois encostem a porta devagarinho e deixem-na bem fechada, porque o meu mundo é precioso, não quero que se perca nada de nada.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Quatorze anos

Á porta da minha escola havias tu. Chegavas, sentavas-te no lancil, puxavas um cigarro e ali ficavas. Parado. Quieto. Mudo.

O cabelo preto todo puxado para trás num arrepio gelatinoso. As mangas a roçarem os bicos dos teus joelhos que espreitavam nas calças coçadas. Um assobio entre as mãos para as meninas que passavam. E as tontas que apressavam o passo com medo do que se poderia seguir. E tu na tua.

O tempo passava e não arredavas pé. Apareciam os das motas, os dos carros, os do liceu de baixo e até alguns pais que insistiam em ir buscar os filhos envergonhados.  E tu ali, de cigarro entre os dentes, de assobio entre as mãos.

Nós raparigas não sabiamos bem o que pensar de ti. Inventávamos-te histórias dramáticas, romances novelescos, crimes impunes.

Mas tu esperavas a Professora Lúcia, que, sempre que passava, baixava o olhar para não te encontrar. Apaixonaste-te pelos seus grandes olhos dourados e pernas intermináveis. Acabaras o liceu no ano anterior, depois de vários anos em repetição - quer fosse por não teres que fazer na vida, quer fosse para demorares-te na contemplação da Professora.

Isto contaste-me tu naquele primeiro dia em que ganhei coragem, sentei-me apertando a saia entre os joelhos e te fiz todas as perguntas. E em que surpreendentemente me respondeste. Não sou mais que uma miúda ao teu lado, mas a tua mão agarrou a minha quando te procurei entre os cigarros.


Ás vezes na correria dos nossos corpos nus na cama da minha mãe, oiço-te a chamares-me Lucia. Mas eu não me importo. Acho que um dia gostava de ser professora também.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Um dia


Corres o meu corpo, fechas-te em mim.
Abres as mãos, digo-te Ai..
O calor que guardavas, já não sei por onde vai.
És rio, és cor, és o inteiro que há em mim.
És as palavras que acabaram, as que se quedaram a meus pés
Letra a letra desnudadas, trazidas no fim do que sou.
Agora sei-te aqui, agora sei-te meu.
Larga o lençol lá fora, estende-o à janela
Deita-te em mim de manso, leva-me para perto do que és.
Sigo-te de longe, visto-me ao espelho
Despida do que fomos, voltando ao que era.
Insinuo-te a mão, encostada à ponta de ti
Solta da vida que me escreveste, encontro-te em tudo o que ja és.
Um dia vou ter-te só meu, um dia vais ser assim
Pensamento desencontrado, vendaval que nasceste em mim.

Adeus


Tocas a beira do palco. Do teu palco. 
Debruçada em ti, vês aquilo que és. 
Sonhas alto, voas mais longe, queres o tanto que ainda adivinhas para o teu mundo. 
A mão estendida aos céus, a ponta do pé que roça o chão, a delicadeza de um momento que é só teu. 
O sorriso que trazes ao peito, ao colo, preso para sempre em ti. De ti. 
Boneca que já foste, ainda és em tudo o que cá deixas de teu. 
Descansa agora doce bailarina, ouve a tua música de embalar...
O palco está lindo e pronto, está na hora de brilhar.
Para a Inês

sábado, 15 de outubro de 2011

História pedida 14 (por Tita e Maria: Profiterole e La Bohéme de Charles Aznavour)

O friso dourado da cadeira condizia com o friso dourado do balcão, que por sua vez levava até ao friso dourado da ombreira da porta, que levava então ao dourado do letreiro onde se podia ler, alto e bom som, «Chez Flô».

Todas as últimas quintas-feiras do mês reuniam-se ali a contar das semanas que passaram. O grupo das professoras reformadas animava a sala tantas vezes vazia. O restaurante da Floripes – perdão, da Flô, como insistia que lhe chamassem – estava cada vez mais vazio e nem os seus afamados profiteroles garantiam a clientela de outros tempos.

As quatro professoras agora já grisalhas, gastavam ali sempre umas boas duas horas a esquecerem o tempo que passara e a encher o Chez Flô de gargalhadas roucas e sinceras – excepto a da Professora Isabel, que tinha uma gargalhada asmática que se ouvia num silvo, enquanto se tornava roxa de tão branca que sempre fora. Floripes deliciava-se a ouvir os detalhes que ritualigiosamente enchiam a conversa cronometrada. Porque todas continuavam com muito que fazer, sem tempo para nada, ou pelo menos assim o anunciavam. A Professora Ilda, alentejana de gema, de sotaque cerradíssismo apesar da vida inteira que vivera ali em Setúbal, trazia sempre um novo episódio. Até a Professora Ana Luísa, de ar seco e sisudo com o seu cabelo curto e másculas camisas de flanela, se agarrava ao braço da roliça Professora Luzia, já não aguentando de tanto rir.

A Professora Ilda hoje chegava de ar esbaforido, acabada de chegar de Beja: Querem lá saber migas, vim direitinha do mê médico lá em Bêja para vir ter com vocemessês e nã é que venho muito mais aliviada? Falei-lhe daqueles aflições que se me dão, aquele sobressalto que me dá de baixo para cima e que parece que me vai sair pela cabeça fora e atão nã é que ele me disse que isto nã é nada, que é mas é um pêdo que nã sabe se há-de sair por baixo, se por cima..? Já viram que até os pêdos têm destas indecisões...?» E o Chez Flô num fartote de rir.

Floripes sorria atrás do balcão. Gostava daquela irmandade. Faltava-lhe uma cumplicidade assim, alguém a quem contar de si. Um dia haveria de contar-lhes da sua história. De quando, na verdura dos vinte, foi ao encontro da querida prima Margot em Paris, irmã de sonhos e promessas. Contar de como se perdeu de amor pelo Philippe, pintor imberbe, que durante aquele Verão ganhava os francos para o café a pintá-la desnuda e desprendida nas promessas de uma vida a dois nas margens do Sena. Vida essa que se despencou no dia em que la douce Flô, como Philippe a havia re-baptizado, o descobriu a vender quadros que mostravam uma nudez que não a sua. Arrumou as malas e rumou a Setúbal. Só chegando escreveu uma longa carta desbotada para a sua soeur Margot a explicar que afinal a sua vida seria à beira do Sado.

No rádio que enchia o restaurante de música francesa dos anos 60 e 70, passava agora a música «La bohéme». Sorriu um sorriso triste enquanto se decidiu a acabar com o ultimo profiterole. Afinal a vergonha já a perdera há muito. Precisamente na primeira vez em que se despiu para um desconhecido na noite dourada de Paris.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Conversa de comadres

«Anda lá, deixa-te de coisas.»
«De coisas?»
«Sim, deixa-te de pieguices, mariquices, comichosices e outras "ices" que tal.»
«Mas porquê, se é assim que eu sou?»
«Porque não te fica bem, faz-te velha, seca, sisuda. Consumida. Olha lá que já nem tens barriga... e a barriga que é uma coisa que enfeita tanto!»
«Mas isso é porque perdi a fome. Perdi a vontade. Já não tenho vontade de mais nada desde que ele se foi.»
«E então? Foi-se, já se sabe e já estava mais que visto. Só tu é que não querias ver, mulher. Há que tempos que ele já estava mais para lá do que para cá.»
«Para o lado da outra, queres tu dizer.»
«Pois, isso mesmo, vês como tu sabes? Vá, anda, arranja-te, enfia um camiseiro daqueles teus todos afiladinhos, de botãozinho dourado rebrilhante e a golinha certinha, que te fica bem e até disfarça essa magreza toda. Credo mulher, que pareces um cão com fome.»
«Cadela, neste caso»
«Pois, está claro. Mas cadela é a outra que te levou o homem para parte incerta, ao fim destes anos todos. Ai o que tu aturaste mulher, só Deus sabe. E eu também sei, que isto ouve-se tudo por estas paredes fininhas. E tu tudo ouvias e calavas, porque te lembravas do que prometeste há bem mais de 30 anos lá à frente do Senhor Prior, que Deus o tenha, só porque era suposto, só porque devias e aquele bruto que te falava mal de dia e de noite, a sopa que estava sempre sem sal, as camisas mal passadas, raios partam o raio do homem que nunca estava satisfeito e tu toda "sim,querido", "está bem meu amor" e ele sempre pronto para te amarrotar, torcer e tu toda doçuras e meiguices porque era o teu homem e nós até fomos educadas assim. E agora, ao fim destes anos todos, troca-te por uma dessas serigaitas brasileiras que desaguaram aqui e por todo o lado e agora que estás velha e seca, agora que ninguém te vai querer, credo mulher é que nem uma barriguinha já tens para amostra, agora vais tu ficar sozinha nesta casa grande demais para ti, silenciosa demais e tu aqui sem ninguém para te encher os dias a queixar-se do raio da sopa nem das camisas.
Olha, sabes que mais, vamos mas é ficar aqui sentadas um bocadinho, que agora de repente fiquei sem vontade de nada. Se calhar foi a feijoada do almoço que me caiu mal».

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Retouner à Dinard

C’est la mer qui m'a changé. C'était le bleu qui m'avait tué.
Les vagues qui se retrouvent sur le sable gris sont des mots que tu m'as dit. 
Viens ici, tu m'as dit, ne m'oublies pas, je t'ai répondu. Et nous avons fait la dance la plus belle, la musique parfaite, les rêves les plus purs. 

Un jour tu sauras qui c'était toi ma vie. Je t’attendais dans nos mots, nos rencontres, nos lettres. Nos vies qu'on a vécues. 

Pour te retrouver ici, à notre plage, le sable mouillée sous nos pieds et toi en disant «viens ici mon amour». «Finalement» je t'ai répondue et maintenant tu peux pas me oublier, ni un jour, ni un moment. 

Parce que je suis à toi depuis les jours qui tu as oubliés… mais toi, tu seras finalement à moi aujourd'hui et tous les jours que les vagues touchent notre sable gris.

sábado, 8 de outubro de 2011

Inês

Hoje sou eu a escrever. Eu, mas mesmo Eu. Não que em todas as histórias não exista sempre um bocadinho de Eu. Mas esta vou ser eu do princípio ao fim. Esta não é uma história de nós. Esta é uma história minha.

Começo pelo fim. A Inês entrou ontem em coma, no decorrer de uma cirurgia que correu mal. Muito mal.

Teve a primeira filha há 5 meses. Tem um feitio que não tem nada de fácil. Sempre gostou de dar espectáculo, da ribalta, de dar que falar. Tem uma escola de dança porque o que mais gosta de fazer é dançar. Principalmente com o seu amor, pai da sua filha, parceiro em tudo. Não o conheço. Mas a ela, sim.

Depois de nos termos cruzado em crianças no mesmo colégio, reencontrámo-nos adolescentes no liceu. Ambas acabadinhas de chegar e sem conhecer ninguém. E assim nos tornámos melhores amigas. Com o tempo formámos um grupo de cinco raparigas inseparáveis. Cada uma mais diferente da outra. Nunca percebi como aconteceu, nem como durou três anos. Os anos em que nos tornámos mulheres. Baptizámo-nos com pseudónimos bem característicos da piroseira da adolescência. E com fundamentos que na altura nos pareciam bem racionais. Hoje parecem uma grande tolice. A Flor, a nossa doce e sensivel, a Estrela que ora brilhava radiosa, ora se entristecia e apagava, a Inês a Lua, porque nunca lhe conheciamos bem todas as faces e eu a Sol. A que falta é a que nos nomeou e nunca conseguimos arranjar outro nome que não AnaSus. Pelo menos que eu me lembre.

Passado um par de anos, eu e a Inês antagonizámo-nos. E isto é suavizar a coisa. Ela lembrou-se de meter-se entre mim e o meu apaixonado (mais tarde namorado) e eu não perdoei. Depois de um sermão de horas em que ela nem abriu a boca, nunca mais lhe dirigi palavra. E nestas coisas eu era definitiva.

Não fosse esta modernice do FaceBook e passaria bem sem saber mais dela. O que não quer dizer q não me lembrasse da sua existência. Mas não me fazia falta. Depois, com o advento da minha entrada no FB, lá nos (re)descobrimos e através de fotografias e comentários mútuos, até parecia que nada acontecera. Old friends. Fui sabendo da gravidez, da enorme felicidade com a sua 'princesa' e vendo as magníficas fotografias dela a dancar - totalmente entregue e apaixonada -, das suas aventuras em férias e daquela força toda que há dentro dela, que bem se vê em algumas imagens que me parecem descabidas e despropositadas por estarem tão longe da minha realidade. Mas ultimamente tenho-me descoberto a 'julgar' muito menos. Se calhar é isto crescer.

Não consigo deixar de pensar na Inês. Em coma. Apagada, fechada. Longe. E a filha a precisar tanto dela. E estou em ânsias pelo dia em que vou chegar ao FB e encontro no seu mural : Back from the dead, seguido de muitos smiles. Ou uma frase assim, mesmo à Ines. Uma tirada carregada de show, como ela. E que me faça respirar de alívio e pensar se não seria boa ideia voltarmos todas aos dias em que não nos largávamos as cinco e dávamos por nós felizes em cima de um muro, a cantar para quem quisesse ouvir "You are my sunshine", só porque sim.

Só porque a Inês voltou e está por ali à procura de um palco qualquer.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Reforma antecipada

Estavam sentados lado a lado. Quase que se tocavam. Quase. Entre eles um suspiro. Um suspiro como fronteira, muro, limite. Era um suspiro espesso, pesado, denso. Com muitos anos dentro.

Começaram ao mesmo tempo, no mesmo dia, na mesma hora, na mesma cirurgia. Ela com as mãos a tremer. Coisa rara, uma mulher cirurgiã. Ele com o coração num sobressalto. Coisa rara, um enfermeiro instrumentista.

Ouviram as mesmas risadas, as mesmas palavras trocistas, a mesma arrogância. Juntos, sem precisarem de conversas nem muitas palavras, destroçaram os preconceitos, os escárnios, os medos. Aprenderam a entender-se só com o olhar. Por baixo da roupa verde, da máscara que tornava todos iguais quando no bloco e sob a luz gélida do pantoff, só precisavam do olhar para terem longas conversas. As cirurgias até hoje, ao fim de 31 anos, ja tinham o seu ritmo próprio, o seu método, a sua ciência. Exacta. Ela não precisava pedir o bisturí ou o fio de sutura. Já o tinha na mão estendida.

Assim como ele a apertou num abraço no dia em que a mãe dela morreu. O abraço que o corpo dela tanto pedia, os olhos suplicavam, mas as palavras calavam. Ou quando ela lhe tocou a mão no dia em que a mulher o deixou. A mesma mão que fugiu do enlace dele quando a tentou prender. Era um para sempre longínquo de mais e os filhos dela ainda pequenos demais.

Hoje era o último dia de trabalho. A reforma chegara para os dois. Agora e aqui o seu casamento de todos os dias acabava.A despedida tambem não precisou de palavras. Só um olhar pesado, suspirado, que disse tudo.

Mas eles ainda ali estão. Demorados, sentados, quase colados. Sem vontade de ir. Sem quererem acabar.

Sem coragem para começar.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

História pedida 13 (por Helena Sacadura Cabral, frase para começo da história): RITUAIS


Era uma tarde de Outono, daquelas em que, por vezes, a nostalgia se apodera de nós. Não de mim, que gosto da estação, do sol baixo e do céu rosa que lhe são tão comuns.
Agarrada ao volante, nem eu própria sabia porque me dirigia ao Guincho.

O volante tremia nas minhas mãos e o cabelo voava em todas as direcções despenteando o que ainda agora a Benilde, do pomposo Benilde’s Hair, esteve a acertar.
Felizmente hoje não era dia de vendaval no Guincho, daqueles em que se confunde a estrada com as dunas, de tanta areia pelo ar, e em que até os caniches levantam voo. Como dizia o meu filho mais velho. O irmão colava o nariz ao vidro à espera de ver tal insólito. E o mais velho a rir-se.
Não sei porque me lembrei disto agora, nem porque vim aqui parar. ´
Mas hoje está a ser um dia estranho, um dia fora de mim. Acordei assim à procura de uma mão que me agarrasse ao acordar. Como faziam os pequenos quando acordavam de manhã e diziam que me iam visitar. E eu a encenar que dormia, de mão fingida à espera de nada, feliz por encontrá-los novamente ali todas as manhãs. Rituais. Acho que é isso que me fez falta esta manhã. Os nossos rituais.
Eles agora têm os deles, um com os filhos, outro com a sua vida. Perdemos os nossos, ganharam os deles. Há dias assim em que me fazem falta, em que esta liberdade toda que agora tenho nas minhas mãos sabe a vazio e a falta de. A falta de coisas que agora não sei nomear. Apenas falta de.
É certo que ganhei tempo e espaço para o que sou e para tornar-me cada vez mais eu. Mas também para encher-me de medos e sustos. Por eles. Os meus meninos-grandes a quem tanto quero.
Paro no bar do Guincho para um sumo.  Sim, lembro-me, tínhamos este ritual no primeiro dia de Outono.  A despedida da praia. Sempre aqui no Guincho, com chuva ou sol. Eles felizes porque já adivinhavam as castanhas a saltarem na nossa lareira e a aproximação do Natal.
Perdemo-nos na adolescência deles, nas vidas atribuladas, nas vontades de mais que sempre os encheram e que ainda hoje não lhes dão descanso. Aos meus meninos-grandes. Devia ter aproveitado para trazer o meu caderno de escrever. Pelo menos fazia-me companhia.
Hoje estou mesmo fora de mim. Hoje faz-me falta alguém ao meu lado. Hoje que é o primeiro dia de Outono, encontrei-me aqui à procura do nosso ritual esquecido.

O telefone toca. A Rita diz-me que já está no estúdio à minha espera para começarmos a gravar o primeiro do nosso novo programa. Todas as terças. Ainda me meto nestas aventuras. Tenho tempo para isso. Tenho espaço. Tenho vontade de um novo ritual. E já sei qual vai ser o meu tema de abertura de hoje. Vou falar do caniche que acabei de ver a voar no Guincho.