Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Voz-Off

Que foi?

Nada.

Não me enganas.

Não sei andar no escuro.

Tens aqui a minha mão. E mais?

Não sei se sei ser pela metade.

Tens aí muitas conjugações do Ser.

Bem sei.

Continuas.

Perguntaste..

E tu respondeste.

Abres a porta, já sabes que entro.

Sei. Anda.

Onde?

Veremos.






sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

É proibido fumar

Digo-te que não gosto que fumes, mas a verdade é que gosto de ver-te fumar.
Explico: não gosto que fumes porque tenho medo das doenças, do mal que faz e come por dentro. E não gosto do fumo que me deixa em sibilos asmáticos.
Mas a verdade é que gosto de ver-te fumar, da tua pinta com o cigarro entre os lábios, do teu ar quando levantas o queixo a deixares o fumo sair, do teu ar sério -- só para ver desmanchares-te logo a seguir - e dos teus olhos em mim (os teus olhos em mim enquanto me sorris e em mim quando me queres sem travão)
Já pedi para aprenderes a fazer diáfanos corações de fumo, mas também sei que o mais que te digo é para largares os cigarros. Quero-te vivo, são, quero-te perto.
Naquele dia menti, disse que não podia ir à janela ver-te. Ou veres-me. Mas a verdade é que espreitei e vi-te na mota, passavas a mão no cabelo e tinhas um cigarro preso nos lábios. Não quis que me visses -- toda eu tremia, todo tu me fazes tremer - mas quis ver-te.
Não te quero mentir, só o faço quando tudo é demasiado demais e eu me faço fraca com vontade de enrolar-me num casulo fora de tempo.
Não vi corações esfumaçados, nem vi o teu sorriso de tão longe que estavas.  Eu tremo, tu fumas. Nada disto é muito saudável, nada disto era para ser assim. Mas é e não fazemos mais nada se não perguntar-nos todos os porquês.
Sabemos bem: a resposta temos os dois por dentro, mal ou bem já a sabemos, mas não é fácil pôr-lhe legenda. Como reduzir a uma resposta tudo o que para aqui vai? "Uma raridade", saiu-me no meio de um atropelo de emoções. Contigo é assim, emoções num corropio desde o micro-segundo em que a tua pele toca a minha, ou desde o momento em que oiço a tua voz a chamar-me como só tu me chamas ou no instante em que leio uma palavra tua. Confesso:  é mentira, sabes tão bem quanto eu que não é preciso nada disso. O feitiço está lançado e não tem tempo de acabar -- culpa da matéria de que somos feitos, matéria perfeitamente encaixável qual puzzle infinito com peças que se multiplicam incessantemente. E culpa de cada partícula indizível que nos compõe e que está permanentemente à procura do outro: infímas partículas que se puxam e se procuram, que se enredam e se fundem deixando de haver princípio de um e fim do outro.

Anda, acende um cigarro e já não sei se não é melhor acenderes um para mim também..












sábado, 18 de fevereiro de 2023

B.I.

Vamos pela estrada. Gosto do verbo ir e também gosto do ficar.
Gosto de ter os meus meninos a fazerem mil perguntas, mas também gosto do seu sossego. 
Gosto de ir com planos bem marcados e gosto de ir à descoberta.
Gosto ir para o calor e gosto de ir para o frio gelado.
Gosto do mar e gosto do campo, gosto da montanha e dos campos de girassóis.
Gosto das piscinas infinitas e gosto das ondas desconhecidas.
Gosto de ter um braço pela cintura e gosto de ter mãos pequeninas nas minhas.
Gosto de gargalhadas que fazem a barriga doer e gosto de silêncios encantados.
Gosto de gostar. Gosto muito de gostar.





sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Verdades à parte

Há um tempo em que parece que tudo pára.
Há um breve instante em que as luas se alinham, os sóis, estrelas e planetas e tudo entra em perfeita combinação. É nesse ínfimo tempo em que vislumbramos o que podemos ser. Nessa fracção de momento só estamos nós e o que nos une, esse fio invisível, perene, infinito, que corre de mim para ti e de ti para mim, num vai-vém que não tem como acabar.
Venham dores, tempestades, alegrias e festejos, venham dias que não acabam, a noite mais escura, o sol escaldante ou os vendavais; venham anos, dias, meses, venham muitos ou poucos, venham novos e os de sempre, venha tudo o que houver à mão de semear e o que estiver por inventar, que este fio mágico, brilhante, inesperado e inantigível se manterá. 
Pode ser uma palavra, pode ser um silêncio, pode ser uma vontade dita ou acalmada. Pode ser um sorriso, pode ser um abraço, pode ser um toque de pele, pode ser uma gargalhada, pode ser uma lágrima ou um arrepio. Podem ser mil combinações ou apenas uma, mas é nessa partícula de instante que este cordão etéreo se revela, rebrilha e nos torna equidistantes.

Não há nome, não há legenda, não há prova, mas, acreditem, é mesmo assim.







terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Breve história do senhor Cupido

O senhor Cupido tinha a mercearia aberta desde o tempo que já ninguém lembrava. A loja tinha servido meninos que eram agora pais e pais que eram agora avós. Se a Rua de Predouços era o que era, muito se devia ao Senhor Cupido. Era homem sem idade, sem primeiro nome, sem história que não a do espaço sobrelotado de tudo o que dava para comprar e vender.

Havia sempre quem nos conhecesse, quem perguntasse «Então e o paizinho e a mãe, estão bons?», havia sempre um chocolate Regina que o senhor C. me escondia no bolso e havia o neto que nos espreitava atrás do balcão. Tinha grandes olhos pretos, mas não dizia o nome. Era o neto do Senhor Cupido e todos lhe passavam a mão nos caracóis escuros à espera de ouvir-lhe palavra. O avô também não se alargava em conversas sobre o menino. O que interessava era que as alfaces hoje estavam uma maravilha, que nunca o pão foi tão quentinho «acabado de cozer», que os biscoitos da Dona Amélia naquele dia é que estavam um mimo.

Eu pedia aos padrinhos para lá irmos sempre a seguir ao almoço. Até aos cinco anos passei os dias à espera das seis para os pais irem buscar-me e zarparmos de volta a casa. Eu dizia que queria ir ao Senhor Cupido, mas queria mesmo era espreitar os olhos do menino que se escondia por baixo da caixa registradora, que me olhava fixamente e que eu não conseguia desgrudar. Não lhe sabíamos a idade, nem lhe ouvíamos um som mas, na verdade, para mim já era ritual a que não queria faltar.

Quando fui para a escola dos crescidos passei a ir só a casa dos padrinhos ao Domingo e esse dia era sagrado: mercearia fechada e o senhor Cupido à janela do primeiro andar, agarrado a um cigarro, cumprimentando com um sorriso quem visse chegar. Do menino nem rasto e eu tinha vergonha de perguntar.

Passaram muitos anos até voltar à Rua de Pedrouços e quando voltei ia já em viatura e vontade próprias. Os padrinhos há muito que lá não estavam. A mercearia ainda aberta, aparentemente intocada. Tinha a certeza que entraria para abraçar o Senhor Cupido e perguntar-lhe pelo neto calado, mas ao balcão só uma loura muito loura, branca muito branca, de olho azul muito azul, com pronúncia pouco nacional e nada de sorrisos aos clientes. Dei uma volta no espaço diminuto -- já sabemos da inesgotável capacidade do tempo para encolher espaços e histórias  --, perguntei ao empregado semicurvo e de fartos cabelos negros se dava licença para passar entre as alfaces descoradas e os pães congelados e saí desapontada. 

Ao procurar a chave do carro no bolso do casaco encarnado encontrei um vistoso chocolate Regina. Espreitei à porta da mercearia. Além da loura com cara de poucos amigos, só uns lindos olhos escuros atrás do balcão. Em pontas dos pés descobri um menino recheado de caracóis louros muito louros. Pisquei-lhe o olho e saí.

Não olhei para trás, mas tenho a certeza que na janela do primeiro andar estaria o Senhor Cupido de cigarro entre os dedos e a sorrir ao ver-me zarpar.



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Marginalidade(s)

Fazemos a marginal de mota. Ele sabe que isso faz-me feliz e assim disse «por ti abro excepção». Não gosta de penduras e eu percebo esta coisa dele -  até sorrio por isto é mesmo coisa tão dele -, mas faço-me, mais uma vez, excepção (e que somos nós se não aquilo que confirma todas as regras?)
Já pedi autorização para usar aqui as suas palavras, este vislumbre do que ele é. Diz que sim, mas também sei que não iria dizer que não. Não é convencimento, é que conheço-o tanto quanto ele me conhece a mim. Por dentro e por fora, sem cartilhas, nem mapas, sem serem sequer precisas desculpas ou oblíquas explicações. É, sempre foi, sempre será só assim.
Pede que o aperte com as minhas pernas, que me cole peito com costas, cabeça no ombro, mãos na cintura. Não precisa ver-me pelo espelho para saber que vou o tempo todo a sorrir: porque gosto de fazer a marginal de mota em dias de sol ameno e mar azul, porque gosto do vento na cara e na pele, porque é bom tê-lo - enfim - só para mim. Nestes momentos fico capaz de engoli-lo de amor, de paixão, de uma fome insaciável, sem limites e sem pudor. 
Deslizamos até à baía de Cascais. Corro para ir buscar gelados e besuntamos as bocas, entre gargalhadas e mil beijos mil, encostos e abraços, palavras doces e olhos um no outro. Mas não demoro os meus nos seus.

Não gosto de olhar nos seus olhos. Não gosto de olhar porque vejo o fundo do que há nele sobre nós. Os seus olhos em mim engolem-me, sugam-me, tenho medo que me façam desaparecer imperdivelmente, para sempre, para dentro dele. Juro, é avassalador e tira-me o fôlego. É pecado e perdição, é doçura e infinita paixão e são mil coisas que não sei ainda transcrever.

Pergunta se estou pronta para regressar. Respondo que não, sempre não, infinitas vezes não. A mota desliza ao vento, o sol já se põe, as minhas pernas prendem-se às suas e os nossos corpos encaixam sem pedir favor. Sem ele saber estou a devorá-lo de uma vez só, a ele, ao sol que se põe, à pele quente e à vontade que esta estrada não tenha fim.






domingo, 12 de fevereiro de 2023

Fins de Inverno

Vou largando as roupas pesadas, uma a uma. Arrepio-me porque lá fora faz frio e eu também tenho, ainda, coisas de gelo por dentro. Mas vou largando, peça a peça e isso torna-me mais leve.
A certeza de que depois ficarei melhor ajuda a esquecer os arrepios. A vontade de voltar à força sem fim, aos risos soltos e transparentes e às palavras que saem sem pensar, também ajuda. Não quero voltar à energia inesgotável: aprendi que também tenho que saber parar.
Assim, pé ante pé, ligeira mas segura, faço a estrada. Camada a camada vou deixando um estranho caminho enrodilhado pelo chão, que conta uma história, aquela de onde vim e para onde vou.
Já sei que tenho que respirar, que tenho que fechar os olhos e sossegar, que às vezes terei que deixar o tempo em suspenso e já sei que não preciso ter ninguém à minha espera. Ajuda se tiver a tua mão na minha, mas também já sei fazer o caminho sozinha.
Nestes dias frios, escuros e sem muita história, tenho sempre a ponta do nariz fria. Não sei porquê, mas assim é. Antes eram as mãos geladas; adorava entrar em camisolas alheias (dos meus!) com os dedos feitos cubos de gelo e senti-los arrepiar. Agora quanto muito esfrego a ponta do nariz nos meus amorzinhos, só para vê-los sorrir e sentir em todos os mais ínfimos poros o quanto somos uns dos outros.

Não tarda chega a Primavera e bem sei que será mais fácil deixar-me quase nua, largar o que ainda prende e pesa. Já pouco, bem pouco quando olho para trás e vejo o que já lá ficou pelo chão. Sorrio.

Agora já sei que o que me disseste não era só circunstância, sinto-o bem dentro de mim e sei que é verdade escrita no tempo: «Tudo passa, tudo passa meu amor».





sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Dó Maior

Ando aqui em semi-círculos. Meia volta para a direita, outra meia para a esquerda. Podia ser uma dança, coisa ritmada e boa, mas nem por isso. Ando a ver se me encontro. Acho que é isso, mas leve e pairante, sem nada das agruras que andaram comigo lá atrás.

Por acaso é verdade, tenho saudades de dançar. Também tenho saudades de cantar. De subir a um palco toda ligeirinha e aproveitar só o instante.
Também podia ser só cantar nas aulas com a Professora Cristina, toda ela espaçosa, em corpo e presença, a chamar-me os piores nomes quando teimava em esquecer-me do último Dó nas escalas - o que acontecia sempre..
Subia as escadas do prediozinho em Campo de Ourique com um nó no estômago: eram nervos e era responsabilidade. A Professora Cristina cantou com a Callas, foi nome primeiro da ópera nacional. (Até hoje acho que só pode ter-me aceite como aluna aqueles dois anos por alguma necessidade mais prática.)
A loura rapariga de grandes olhos azuis e voz cristalina que se cruzava comigo descendo as escadas cantarolando, era ser etéreo e carregado de um talento a que eu, ingenuamente, aspirava. Mais tarde consegui colar-lhe um nome quando a vi anunciada em palcos por aí fora (a quem interesse: era a Marta Hugon).
Eu chegava sempre atrasada, depois de voltas infinitas para estacionar, e naquela hora esvaziava-me de todas as notas, tons e sobre-tons acompanhada pelo piano firme da Professora Cristina. Descia de fugida para regressar ao trabalho -- ia sempre leve, feliz e catarolante. Não interessa se não serviu de nada, se rapidamente me resumi à minha insignificância vocal. Conheci Cristina de Castro, a sua sala encafuada de livros, vinis, bibelots, almofadas e sei lá que mais e fui muito feliz em Campo de Ourique, mesmo que numa corrida, mesmo que perdida entre o riso e a nervoseira por cada palavrão que me era destinado - e merecido, pois claro - por aquela senhora incrível com as histórias mais geniais.
O palco agora é a pedido das minhas crianças. Ainda consigo chegar ao Dó mais agudo, tímpanos a vibrar e ar quase a faltar, mas faltam-me as minhas horas de almoço num pulinho a casa da Professora, onde o mundo ficava em suspenso por 60 minutos enquanto aprendia a ser simplesmente afinada e feliz.

(Descobri agora que a Professora Cristina morreu dois anos depois da minha última aula. Uma memória dela aqui: https://www.youtube.com/watch?v=UV3DIb9PUKw )


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Passo a Passo

 1,2, 3 aqui vou eu outra vez.

Não é que me custe, nem que não me custe, não é que goste, ou que deixe de gostar. Desta vez mais serena, com menos pressas, menos receios. Os tempos são outros, os anos passaram, os miúdos cresceram e tudo isso torna o caminho mais ligeiro.

Tal como os amigos-família que me levam pela mão e sei que estão aqui para o que der e vier. O que der e vier, o que vier e der. Vou juntando-os nos passos dos meus dias. Os que vêm de trás, os que vêm de sempre, os de há pouco e os de agora, todos unos, todos cheios de amor. O afecto é o que mais interessa, já dizia a Madrinha. Por eles corro sempre que chamarem, por mim sei que estão ali à distância de um Ai. Não são assim tão poucos, nem são assim tantos e são todos muito, muito bons. Homens e mulheres,, mais novos, mais velhos, com muito, com pouco, mas o que os une - que nos une - é a verdade à flor da pele. Tudo à flor da pele. Se for preciso, brutos como tudo, brutos a fazer doer, mas com o colo sempre pronto.

E de cada vez que me atrevo a contar um passo que esteja a preparar - louca, louca, louca, oiço lá do fundo de mim - o que tenho deles é um vai, segue, tens mesmo é que ir, viver, fazer. Há lá maior amor?

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Fio de Luz

Hoje, como sempre, e mil vezes mil vezes mil, bato à porta trancada Espero mais que um vazio

Colhida a um canto,

luz presa num fio,

Ela quebrou o encanto

espreitou à janela, riu


tocou a mão estendida,

cobriu-se num segundo,

Minha linda bela adormecida

Esquecida deste mundo


Vem, anda:


Na minha pele

No teu beijo

No meu colo

Num desejo 


Voltas a ser mulher 

- para mim sempre tudo - 

Encontramo-nos no prazer,

No fundo do suspiro, mudo


terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Bandeira verde

Vivíamos nos silêncios, agora somos só leveza.
Ainda não consigo perceber esta mágica: precisamos ir ao fundo, tocar os pés no chão e ganhar impulso para voltar a subir. E quando subimos vamos largando pesos e silêncios e dores e manias e medos e fantasmas, para chegar à tona nesta ligeireza bem feliz.
Foi um médico quem me ensinou a lição. Já se sabe - e aqui confessei - que não me demoro em palavras sobre mim, nem nas boas, nem nas más, nem nas assim-assim, mas essas encaixaram no puzzle absolutamente imperfeito que eu era há uma década.
Primeiro eu, depois ele. Entretanto alguns anos de profundos silêncios, alguns gritos sentidos, algumas histórias com princípio e meio, mas pouco fim.
Dia após dia tenho-o ouvido, maravilhada com a ligeireza com que agora se apresenta. Foram-se os silêncios e foi-se aquele peso todo que se nos entranhava na pele e nos sentidos: eramos (era?) só meio-vivos, emparedados em silêncios infinitos.
Tocámos com a ponta dos pés no fundo, primeiro eu, depois ele, e agora flutuamos à tona, sem saber onde estão as linhas, as fronteiras, os limites. Já aqui contei: o meu melhor sonho sou eu deitada no mar, sem saber onde começo e muito menos onde acabo, leve, leve, sem fim.

Pensava que vinha aqui contar histórias, mas afinal estou só a procurar o embalo. Por enquanto é o que temos: diário de bordo, sem data, sem nomes, sem jeito. De mim, para mim.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Uma forma de Assim

Chegava a casa feliz. A Dona Leonor dava-nos, a mim e ao meu irmão, uma vianinha carregada de manteiga e um copo de leite. Naquele tempo ainda não comíamos iogurtes a metro como agora, nem pão escuro com cereais ou barras de coisas integrais.  Devorado o lanche, desaparecia para o meu canto. A mãe deixara sempre um espaço entre o sofá encarnado e a grande janela que dava para a varanda. Nos dias de calor havia uma fresta aberta e o cortinado branco dançava incansável. Se há coisa que me faz sorrir é lembrar do bem que sabia deitar-me atrás do sofá, sentir a madeira fria e dura na cara, nas palmas das mãos e imediatamente adormecer. Memória boa que dá vontade de voltar para trás do sofá, tantas décadas depois. (Não será por acaso que, nos momentos mais doídos, é no chão que me deixo a chorar. Choro muito, muito, faço tudo para chorar o mais que tenha por dentro. Esvazio-me, para depois recomeçar. Esvaziar e voltar a andar. Já há muito que não acontece e ainda bem e que assim continue e bate três vezes na madeira e não se fala mais nisso)

Muitas vezes acordava já no escuro e não havia nada melhor.  Corria para o quarto da mãe. Tinha que ser depressa antes que ela chegasse e descobrisse o segredo. O camiseiro de madeira escura escondia mil vestidos de princesas. Leves, com folhos, fitinhas e laços. Os preferidos: um branco etéreo com uma fita azul clara no decote e um rosa com folhos de cima a baixo. Nunca vira a mãe com aquelas camisas de dormir e ainda bem porque, assim, vestiam-me de histórias de meninas e fadinhas sem ninguém desconfiar.

Não sei porque não tenho uma camisa de dormir de folhos e fitinhas. Não sei porque deixei de escorregar para o chão numa sesta fresca enquanto o cortinado branco da minha sala dança sobre mim. Não sei porque já não como vianhinas carregadas de manteiga, nem porque os dias acabam mal estão a começar. Estou aqui mas ainda lá estou -- também. 

Fecha os olhos e ouve-me baixinho no canto da tua orelha: 

Gostava que te deitasses comigo num chão de madeira fresca, de mãos dadas, talvez só mesmo as pontas dos dedos a tocarem-se, talvez mesmo sem uma palavra sequer. Vais queixar-te das costas, do tempo que já passou, do frio na pele, mas eu não quero saber, porque volto a ser pequenina, ao teu lado. Assim.


domingo, 5 de fevereiro de 2023

Amanhecer

Demoro-me nos lençóis quentes da noite bem dormida.
Se me desvio um milímetro, arrepio de frio. A cama está vazia de outro que não eu e até me sabe bem assim.
Deixo os dias começarem devagar, estico uma e outra parte de mim, à vez. Procuro as vozes das crianças; às vezes estão, outras não.
Enquanto desperto devagarinho da noite espreito se o dia já chegou. Entra luz pelas falhas do estore e assim sei que está na hora. Na hora de começar.
E está mesmo na hora de começar, acordar, de voltar a mim. No fundo, sair do casulo em que me enrolei em cura demorada.
Aos poucos, com vagar e sem tempo a contar, voltam as vontades nas pontas dos dedos e à flor da pele. Mais regradas: quando caímos não queremos voltar ali.

Enche o peito de ar e vai, disseste tu.
Bem sabes que as palavras correm por mim e poucas são as que ficam. Não é arrogância, é falta de tino mesmo. Mas estas guardei-as sem saber -- melhor, sem querer.

Vamos.

Menina, toca a acordar.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Regresso(s)

Voltamos?

Não sei, diz-me tu.

És sempre isto. Peço respostas, dás-me reflexões.

E, ainda assim, aqui estamos. Já viste?

Sim, bem sei. És vício, sal na ferida que não deixa de arder.

Já me disseste coisas mais doces.

Já fui mais doce.

Não penses que me enganas. Ainda estás aí.

Seja.

Não fiques assim. Sabes que isso faz doer.

É escudo, é capa de gelo. Por dentro eu, a mesma.

Por isso te espero. Venham dias, meses, anos. Vou estar sempre aqui.

Sim, sei que estás. Mas não como eu queria.

Não se pode ter tudo.

Anos a ouvir essa conversa.

É verdade.

Não quero saber.

Não chega já disto? Minha querida, meu desassossego, minha perdição em flor: anda, chega-te a mim.

Aqui estou.



(De volta!)