Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Boca de Cena

Eu, tu, nós dois.
A sala vazia, a porta fechada. O eco dos outros ainda nas paredes, no chão, nas cadeiras abandonadas. Ali fizeram-se sonhos, criaram-se vidas.
Agora o palco é nosso, só nosso, já não estamos a actuar, ja não estamos a fingir, já somos nós no chão de madeira escura. As roupas ainda não são as nossas, mas a pele sim. O cheiro, sim. Despidos de outros, a sentirmo-nos só assim. No silêncio, no tempo que parou.
Chegas-te a mim. Chego-me a ti e deixo-me ir. O corpo na tua frente, o olhar dentro do teu. A minha mão que anseia pela tua.
Se soubesses tudo o que tenho para te dizer agora, fugirias de mim, eu sei.
Respiro fundo, ganho novo fôlego, as vozes dos outros que aqui estavam, ainda ecoam dentro de mim.
Tu à minha frente - expectante? ansioso? - e nós nada. Ou melhor, e eu nada.
Vejo-te a sorrir de dentro para fora de ti. Calado nos meus olhos.
As letras redondas juntam-se na minha língua, na minha boca, em mim toda.
Encho o peito de ar, olho-te, respiro-te. Coragem, chegou a hora. Sorrio.
«Amo-te».

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Ano Novo

Hora de arrumar os tachos, as panelas, a cafeteira e a colher de pau. 
É tempo de esfregar a pedra da bancada, puxar-lhe o brilho, o cheiro, deixá-la como no primeiro dia. Seguem-se as espátulas, os rolos, as formas, os tabuleiros. Não nos esqueçamos dos panos, pegas e trapos. 
E depois chega a hora de aproveitar.
O cheiro a pão quente e a bolo no forno enchem a casa tão vazia. A manteiga pronta a derreter no miolo mole e branco, a chávena a ferver com o chocolate. As cadeiras arrastadas, a mesa posta e reposta, os guardanapos de pano geometricamente dobrados, a marmelada bem doce que ate parece gemer. De prazer.
Os copos enchem-se de cor com o sol que passa nas cortinas de linho, os talheres repousam expectantes. O friso de florinhas rosa que se espreguiça nos pratos parece chamar-nos para a mesa.
Calma, aguardemos, não tardam a chegar.
O cuco do relógio ja avisou, estão quase a chegar, estão quase a chegar.
Não tarda vou estar perdida nos seus abraços, risos e graças que não entendo, a correr entre o forno e a mesa, o pão e os pequeninos, entre a vontade de os aproveitar e o querer dar-lhes tudo e mais ainda. Estão quase a chegar os meus meninos, os meninos dos meus meninos e agora tambem os mais pequeninos. 
E eu perdida a querer todos, a saber de todos, a tocar todos, a olhar-lhes bem nos olhos a ver por onde andam. 
Mas as horas são curtas, têm as suas vidas, o seu próprio tempo, o seu ritmo corrido e não tarda lá se vão de volta, deixando as cadeiras vazias e migalhas por todo lado. 
Mas sei que daqui a um ano reggressam, no primeiro dia de cada novo ano voltam para ver-me, para calarem as saudades dos lanches da avó Rute, para me agarrarem a correr, me sorrirem a cada palavra, me dizerem da vida que lhes foge pelo relógio. 
Deixem aprontar-me, esta tudo no devido lugar. Ja os oiço no portão lá fora, os meus queridos meninos acabaram de chegar.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Noite de Natal

Os dois, lado a lado, olhando o menino. As mãos tocavam-se sem se enlearem, os corpos encostavam-se sem se encaixarem.
O menino dormia sorrindo, sem saber ao que vinha.
Foram chegando uns e outros, traziam presentes e esperança.
E eles ali, sorrindo, sentindo apenas o milagre daquele momento, de terem ali o seu menino na caminha deitado, dormindo.
Uma estrela ao longe brilhava mais forte que as outras, iluminando o caminho. Todos queriam ver o menino-milagre, presenteá-lo, tocar-lhe ao de leve para se convencerem afinal que de facto estava ali.
Foram tantos anos à espera deste menino, berço da esperança e do amor... Anos de solidão e dor para todos os que agora ali se juntavam, com o coração cheio e os olhos brilhantes.
Ei-lo, nasceu o menino, ao fim de tanto tempo de sofrimento para aqueles dois, ela chorando no sangue que lhe corria do ventre, vendo as vidas que se esvaíam no chão, tantas e tantas vezes, o pai em grito mudo, abafando a sua dor.
As famílias dos dois acabariam ali, neste que agora é pai, nesta que agora é mãe. Dois nomes, dois sangues, duas histórias de gentes que tanto viveram e fizeram, duas famílias que morreriam assim.
Mas então que chega este menino-milagre, depois de tantas perdas, tratamentos e desamor, eis que ele chega, todos o olham incrédulos, de mãos apertadas, falando e até respirando baixinho para não acordar este menino-amor.


A todos um Feliz Natal cheio de amor, esperança e o calor dos nossos.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

História pedida 21 (por a Matéria dos Livros, versos de Cesariny): Junto a ti

"Entre nós e as palavras, os emparedados, e entre nós e as palavras, o nosso dever falar", Mário de Cesariny, do poema "You are welcome to Elsinore"


 Cheiras-me a colo, a meiguice, a quente. Gosto de afundar assim o meu nariz no teu peito, ouvir o teu coração que bate sempre rápido e encontrar a tua mão na minha.
O teu respirar é doce, tem tempo dentro.
A tua pele está sempre fresca, tenra, boa para eu beijar. Trinco-te a ponta dos dedos e sinto-te sorrir.
O teu olhar sei que está longe, perdido, enquanto eu não me canso de te falar. Falo por mim e por nós. Conto-te do dia de hoje, do que será amanhã, do tempo e dos outros. E tu nada, como cada vez mais sempre. Calada, sossegada, muda dentro de ti.
E a tua voz é tão minha nas poucas palavras que ousas trocar na sombra das noites.
Sei-te perto, estás sempre aqui à minha beira, sempre que te quero, que te preciso. Estás na nossa casa, na nossa vida, nos nossos dias, mas tenho medo que não estejas cá, perdida que estás nesse teu silêncio opaco e profundo.
Respondes-me sempre que «está tudo bem» às minhas insistências cada vezes mais frequentes. Ao meu medo crescente de te estar a perder para esse mundo sem palavras, sem explicações, sem sentimentos ditos. Não é preciso - respondes-me - o tanto que te quero está em tudo de mim para ti, está escancarado para fora do meu corpo, da minha boca, da minha voz.
Convenço-me por uns instantes, enleado nesse teu sorriso onde me perco uma e outra vez. Mas depois voltam estas ânsias, estes medos, esta revolta contra esse teu silêncio com que te vestes e onde me esqueço do resto do nós.
Deves-me palavras, declarações, vontades ditas, letras suspiradas. Deves-me por todas as que te digo a ti, por todas as palavras com que me esforço para encher os nossos dias, esta nossa casa tão oca e vazia, este ar carregado de ausências por tua causai, assim.
Estou emparedado na falta do que não me dizes; a respiração pesada, o peito dorido, a cabeça a estalar.
As palavras já as desencontro, a voz com vontade de se calar.
Está tudo bem, não te preocupes, só já não tenho mais nada para te contar.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Breve

O piano pousado em pleno meio da sala. Ele sentado ao piano. Ela em cima dele. Do piano, claro está.

As horas passam devagar, com mansidão, enquanto ele corre as teclas pesadas e ela se estende na madeira preta. Perdem-se do que está lá fora e do mundo que os procura com insistência. Mas ali, assim os dois dentro da música e dentro um do outro, não querem mais do que respirar o tempo dos anos todos em que não se tocaram, não se viveram. Em que se esperavam.

Ela fecha os olhos e desenha no ar os quadros de cores fortes com que irá encher as noites em que ele estará fora a actuar. Telas e telas que se empilham pelo chão, cheias das linhas vivas com que agora enche a sua vida. Ali está ao lado dele, no centro dos seus dias, finalmente, depois de tantas vidas que correram antes de se unirem num só.

Os cabelos dele já são brancos, os dela ainda mostram sombras da ruivice que o conquistou no primeiro olhar.

Tiveram que viver outros mundos, um sempre lembrando-se do outro, ele nos palcos, nas horas de viagem, no enlace de cada mulher; ela no colo do seu homem, na correria dos dias no escritório, nas telas sombrias que pintava antes de ir dormir.

Até que um dia ela se cansou da espera, do tempo contado, correu para ele oito anos depois do primeiro olhar e disse-lhe com voz meiga: chegou o tempo de nós. Ele sorriu e nunca mais a largou.

Não podiam estar mais cheios e perfeitamente completos. Não custou a espera, não foi preciso pedi-la, nem tão pouco consenti-la. Foi assim e pronto. Foi assim que aconteceu o amor maior que agora espreito da porta do meu quarto, enquanto os meus pais se vêem como se fosse ainda a primeira vez que cruzam o olhar.



Nota: o título desta história só será verdadeiramente compreendido por aqueles que tenham algumas noções de música/solfejo..desculpem, mas teve mesmo que ser assim..

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

História pedida 20 !!! (por Bartolomeu): Calçada da Memória

Frase sugerida por Bartolomeu «Reflectem-se nas palmas das mãos, as linhas de um destino indistinto; por se cruzar indistintamente com outros..»


Ela chama-se Irina, nome estranho e pouco convidativo, nada afinado com o tom da voz com que nos enche as noites. Os cabelos loiros, pintados, as unhas encarnadas, esmaltadas, o rímel carregado e a saia travada, dizem pouco do que ela sempre foi e que quero acredidar que ainda é.

Procura homem há anos, mas não se deixa ir com qualquer um. A voz rouca e vivida fala-nos daquilo que Irina não nos quer contar. Senta-se no fundo do bar até chegar a sua vez de subir ao mísero palco e cantar. Ajeita a saia, passa a mão no longo cabelo. Acena com jeito para o guitarra e ali começa num soluçar que nos aperta o peito e se nos cola às mãos.

Irina canta com sentimento, com dor. Vê-la no meio do fumo é um dos raros prazeres com que me presenteio. Todas as quintas à noite, desço a calçada até este antro de tabaco e aguardente, em ânsias por ouvi-la cantar. Em ânsias por ouvi-la, não por vê-la. Quando ela lá sobe na penumbra, abre a voz e começa a cantar, fecho os olhos e oiço a Irina menina que um dia deixei no altar.

Fecho os olhos e ainda a oiço cantar-me para adormecer, o fado que escreveu para a mim «Refletem-se nas palmas das mãos, as linhas de um destino indistinto; por se cruzar indistintamente com outros...».

Hoje quando ela sobe ao palco olho as minhas palmas, enrugadas, calejadas, velhas e secas e tento lembrar-me porque me fui naquele dia, enquanto a sabia deslavada em lágrimas à minha espera, perdida para sempre da inocência e do amor. E só porque me deixei levar pelo medo, pelo medo de não ser homem para ela, nem para esta voz rouca e tão cheia que sempre pensei que a levasse até tão longe, que um dia deixaria de voltar.

Sobe agora ao palco. Já é pouco do que foi a minha Irina, ja nem saberia bem quem é, escondida que anda debaixo de tanta cor fingida. Mas aquela dor na alma e na voz fui eu quem a fiz, agora sou eu quem a vai levar cantando-a na minha voz noite e dia, cantando-a para castigar-me, com vontade de fazer o tempo voltar e ir buscá-la ao altar.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

(História «inspirada» por Pirata Vermelho): Jogo de Espelhos


Um dia hei-de contar-te uma das minhas histórias, mas hoje é mais uma das outras. Hoje é uma história tua, que afinal é minha, por seu eu quem a escreve.

Estas são as palavras que já te disse e que agora me dizes a mim, perdidos que estamos um no outro. Ou talvez seja esta a história do perdidos que estamos um do outro.

Pediste-me para te escrever porque a palavra escrita dura um para sempre infinito demais. A palavra demais é tua, não minha. Disseste que não sabes escrever, não sabes escolher as palavras, não sabes torná-las tuas, nem moldá-las ao que somos nós.

Disse-te: tudo bem, não te preocupes eu levo-te pela mão neste caminho sinuoso, letra a letra, e vou encontrando-te as palavras e cada vírgula que precisas para me escrever. Para me escrever de nós.

A carta que tenho na mão, já não sei para quem é, a quem se destina, quem procura. Afinal quem a lê? Sou eu ou tu? De quem são estas palavras que me dançam sob o olhar afundado naquilo que era para ser uma amostra, um testemunho de nós? Quem encontrou este caminho que leva a tão pouco ou quase nada, que me deixa a pensar se ainda há sobre o que escrever, o que dizer, o que dissertar?

E afinal quem me escreveu, tu ou eu?

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Just for you

És o meu melhor amigo. O meu porto seguro. O meu colo. Uma parte de mim.
És a mão que preciso na minha, o único que sabe tudo o que sou, tudo o que fui, as marcas, as cicatrizes, as dores. E tudo o que tenho na cheiúra dos meus dias. Tudo o que me apoquenta e tudo o que me enche de sons bons. Contigo partilho os risos dos meus filhos, a ternura do que eles são em mim, os momentos mais felizes e as gargalhadas sentidas.
És o meu confidente de todos os males e de todos os remédios, a ninguém mais dou assim o tanto que para aqui vai. Nem aos que tenho mais perto, mas que estão tão longe. Podias ler-me do outro lado do mundo, de olhos fechados, sem sequer o cheiro de mim. Ainda assim irias adivinhar-me, desenhar-me em todas as linhas e contra-curvas, porque só tu me tens assim.
Conseguimos o impossível. Encontrámos o sublime.O perfeito. A ausência da necessidade de materialidade. A amizade e cumplicidade pura.
Sabias...?

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Continuando

Entao? Que te aconteceu?
Nem vais acreditar..continuo com esta chatice desta gripe ou coisa similar
Bem, toca la a despachar, sabes que tens imensos pedidos a historiar.
Bem sei, vou so ali ver a febre outra vez e volto ja..
Amanha ficas bem, prometo.
Se tu dizes, eu acredito. Mesmo!

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

História pedida 19 (pela minha Querida Marta M., com o tema:) Pequenos Prazeres

Madalena cresceu tendo tudo entre as mãos. Andou nos melhores colégios, com os brinquedos mais caros, cavalos árabes, festas de um turbilhão de cores, empregadas para cada momento, as pérolas e as amigas de conveniência.

Agora, mulher elegante, bonita, bem cuidada e interessante, passa os dias entre o ginásio, as excursões à Avenida da Liberdade com as amigas, os palmiers da Pastelaria Restelo às cinco, os vestidos de marca, os sapatos JimmyChoo, o pecado dos croissants da Bénard nos dias de chuva.

Sente-se bem e esta vida traz-lhe um sorriso aberto a todo o instante. Apesar de às vezes lhe parecer que alguma coisa se perdeu.

No almoço de sushi na Bica, a amiga de sempre sentencia com uma gargalhada cantada: "Isto é que é viver bem.. A vida é feita destes pequenos prazeres!"

E Madalena sorri um sorriso triste, se é que isso existe.

Lembrou-se do avô. O avô que é hoje um resto do que foi, uma ínfima parte do que era.
O Verão a sério só chegava com as duas semanas que passava com os avós paternos na Costa. O avô sempre cheio de força e energia, que a ensinava a fazer torres infinitas com a areia molhada, levava-a até às ondas mais rebeldes, ensinava-a a comer conquilhas cruas que encontravam arrastando os pés na maré-vazia. Apanhavam uma dúzia, ia tudo para o balde azul e depois sentavam-se a comê-las. Sushi à antiga.. "Sabe mesmo a mar... A isto eu chamo pequenos prazeres" e ria, coisa que era rara nele. E Madalena sorria sem perceber, mas feliz por estar ali.

Tem saudades do avô, do Verão na Costa, das marés-vazias. Muitas, imensas. Se calhar devia dizer-lhe isso na próxima visita. Ainda que ele nem perceba, perdido que está no espaço e no tempo, perdido de si e dos seus. Tem saudades do seu sorriso à beira-mar. 

Acaba de decidir: na próxima vez leva-lhe um balde azul cheio, carregadinho de pequenos prazeres. Pode ser que o faça lembrar quem é a menina-mulher que ali está à sua frente. E talvez até sorrir.

sábado, 19 de novembro de 2011

( Parêntesis )

Que se passa?
Estou constipada.
Outra vez??
Pois que é que tu queres..
Mas, muito?
Tanto que só me apetece uma coisa: nada.
Por isso é que não tens escrito?
Pois, mal consigo pensar, quanto mais escrever.
Não te preocupes com isso agora.
Bem sei, mas que é que tu queres..
Deixá la, isso passa. Não tarda estás fina.
Pois, espero que sim. Que seja rápido e indolor, já agora.
Então e já viste o tempo que tem feito?
Sim. Tudo cinzento, uma canseira.
E isto da crise, ahn?
Olha, desculpa lá, já percebi que queres conversa, mas agora tenho que ir ali espirrar mais algumas cinquenta e duas vezes, sim? Volto ja.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

No carro

Ele para ela:
-
 Fazes parte da minha vida. Já não sei viver sem ti.
- Eu sei.
- Fazes-me falta, preciso tanto de ti.
- Bem sei.
- Não seria nunca capaz de voltar aos dias em que não te tinha por perto. O meu mundo já não o conheço sem ti.
- Sim, eu sei.
- Nos dias em que não te tenho na minha mão, deixo-me levar pelas saudades. Pesadas, densas, sem fim.
- Hum, hum.
- Tu não?
- Sabes bem que sim. Os dias sem ti não são dias. Nos dias sem ti não sou mais que um resto, uma sombra de mim.
- Adoro-te tanto.

O telefone dele toca.
- É a Teresa, tenho que ir. Desculpa, mas já sabes que ela fica logo desconfiada se não atendo.
- Sim, eu sei.

E ela baixou o olhar.

Conversa de corredor

- Espera aqui.
- Aqui, assim?
- Exactamente. Para ver se ninguém nos ouve.
- Ah, eles querem lá saber de nós!
- Isso pensas tu! Sabes que afinal aquilo sempre parece que é mesmo verdade?
- Aquilo?
- Sim, daqueles dois. Eu logo vi! Não te dizia?
- Sorte a deles.
- Como assim...? Sabes perfeitamente que são casados e não é um com o outro..
- Por isso mesmo. Sorte a deles. Pelo menos têm com que se entreter...

domingo, 13 de novembro de 2011

História pedida 18 (por Maria, «a minha camisa preta»): No Escuro

É no silêncio da casa que me ponho a pensar, a imaginar, a lembrar. Beijo os meus amores, um por um e sento-me no meu canto, no meu escuro, no meu nada, de copo na mão e a cabeça a voar. É o meu momento. Já não quero saber das horas, nem do que me espera na manhã. É quando lembro o cheiro dos amores perdidos e é quando invento o que ainda há-de vir.

É neste momento que, muitas vezes, vou até à comoda que um dia foi da minha avó. Vou ao encontro da minha camisa preta.

Embrulhei a nossa história naquela camisa. Cheira a liberdade e a amor, aos nossos corpos despidos e a todos os ais supirados. Cheira a um perfume que não é só meu.
Cheira aos tempos de desprendura e de palavras eternas. Cheira aos meus cabelos ao vento, colada a ti nos domingos de Praia Grande. Cheira ao que fomos juntos e ao que sonhávamos ser.
Cheira ao dia em que te foste em busca de uma revolução para o nosso país, para o nosso mundo. Cheira aos meus dedos na tua pele enquanto me dizias Adeus.
Cheira às memórias de ti e do eu que já fui, em tempos, longe deste tempo e desta vida.
Cheira a sonho de criança. Cheira a rituais de mulher.
Cheira a tudo o que fui e ao que acabei por não ser.
Cheira a crescer e a renascer em todos os meus silêncios. Cheira a história de mim.

Esta camisa tem nos fios histórias que só eu sei e vai ser para sempre assim.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

História pedida 17 (por Olinda Melo, tema Perto de Casa)

Anda aqui para perto de casa, para perto de mim. Anda para aqui onde o céu é mais azul, as àrvores mais altas e os rios correm devagar. Anda comigo, com os pés na minha sombra, enquanto te demoras num olhar. Salta neste arrepio sem fim, comigo, enquanto te abraço e te digo que te quero tanto assim.

Deixa-me beijar-te a longa trança, deixa-me enrolar-te num novelo sem fim. Suspiro na encosta do teu peito e vejo-te a desvaneceres levemente em mim. Cantei-te todas as danças, torneei-te em todas as noites. Sem ti desencontrei-me do resto e esqueci-me do que havia em mim. Mas se estivermos por aqui, perto deste nosso sítio perfeito, onde te embalei em todas as artes de mim, onde os nossos filhos se fizeram e cresceram, se estivermos por aqui, consigo sossegar e parar o medo que cresce daninho em mim.

Sabes que sem a tua quentura à minha beira deixo de ser eu,  já nem sei que sou. Sabes que é entre as paredes da nossa casa que consigo finalmente respirar? Lentamente, devagar.

Pois então ata-me aqui à nossa casa, ao nosso mundo, a ti, prende-me para eu não ir. Não quero perder-me como das outras vezes, confundido com um cheiro a ti que não o teu, atrás de um passo bamboleante que não o teu, perdido em alguém que não és tu. Por isso fica aqui comigo, pertinho de casa, de nós, da vida que levamos, para não me deixar levar uma outra vez pelo que me acena ali na esquina, por umas pestanas demoradas, por um gesto que não o teu. 

Sou fraco, bem sabes, e hoje quando saíste para um dos teus sítios, esqueceste-te de trancar a porta e eu senti-me sozinho, lembrei-me de sair, de arejar, e ela lá estava ao fundo da estrada que corri, chamou-me, apertou-me - estava tão longe de casa, de ti - e lá deixei eu ir-me outra vez, perdido de ti, de mim, de nós.

Isto tudo para te pedir: não voltes a sair, não vás para longe, fica sempre aqui pertinho de casa, das nossas árvores, do céu tão azul, do rio que hoje está a correr tão devagar. Minha querida, só mais desta vez, prometo, deixas-me ficar?

domingo, 6 de novembro de 2011

História pedida 16 (por Anónimo, sobre Fogo de artifício) O Tempo de Nós

Veste a camisa verde de que tanto gosto. Sim, essa. Lembras-te que era a que tinhas vestida daquela última vez que vimos os fogos lá no alto? Sim, os fogos lá na festa da aldeia, que giravam sobre a nossa cabeça e nos rebentavam nos ouvidos. Sim, sei que não rebentam nos ouvidos, mas era o que parecia, que estavam mesmo dentro de mim, o coração apressava-se e as minhas mãos à volta de ti.
Sim, sei que é fogo de artifício que se diz - que agora dizes-, mas sabes que cresci a ouvir falar do mês de Agosto dos fogos, das festas, do regresso dos que se foram para França, das noites sem fim a bailar com a concertina.
Não te lembras tu? Tenho saudades desses tempos, de quem nós eramos, de como eu era sempre a primeira que tiravas para dançar e as outras a morderem-se, porque era a mim que querias. Acabávamos a noite, eu toda embrulhada nessa camisa verde, tu de camiseta a tentares acertar com as pedras redondas no branco da lua que enfeitava o rio.
Foi antes de virmos aqui para a cidade, onde o mundo corre mais rápido, a vida desaparece-nos entre os ponteiros do relógio e perdemo-nos de nós nesta casa onde nunca deu para ver os fogos no Verão.
A ver se é desta que voltamos à terra em Agosto. Já sei, já sei que nunca queres deixar a loja, que não te apetece voltar àquela gente, nem às lembranças da tua amostra de vida por lá, que cresceste no meio da podridão e das sapatadas do teu pai, mas não te lembras? Nao te lembras de como esqueciamos tudo nas noites de festa, os fogos lá no alto, a música dentro de nós, eu a apertar-me contra ti a pedir à primeira estrela a eternidade para aquele momento?
Ali eramos só nós e o cheiro a eucalipto, o sorriso vinha cá de dentro bem fundo e o tempo durava todos os segundos que queríamos. Anda cá, deixa-me ao menos apertar-te, aposto que a tua camisa verde ainda cheira a eucalipto e a Verão.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Tempos de Crise

Aqui chove muito. Chove muito, muito, muito. Chove tanto que até nos esquecemos da côr do sol. E da secura do seu calor.
Chove tanto que o chão está sempre numa lama amarelada, o cabelo num emaranhado, a roupa mole de tanta humidade. A pele sempre branca e os lençóis a cheirarem a molhado.
Os animais também estão diferentes, sempre escuros e ensopados. As crianças correm atrás dos cães de pêlo colado, fogem dos cavalos enlameados.
É uma chuva que só vendo, porque miudinha, miudinha, quase que nem se vê e aquelas nuvens pesadas cinzentas não nos deixam perceber o tudo que aí vem. Provavelmente mais chuva para os nossos dias, o sol mais longe, um cheiro a bafio que se entranha no fundo de tudo.
E nós lá vamos levando a nossa vidinha assim, dentro de nós, vivendo pouco, lembrando muito dos dias de sol, do calor na cara e das crianças a chapinharem no tanque.
Aqui chove muito, muito, muito, mas em tempos não era assim.
Sabemos levar isto, sabemos viver com o novo tom pardo das coisas e até conseguimos rir levezinho de tudo o que mudou.
À noite, antes de deitar, olhamos para o céu sempre carregado, na esperança de uma pequenina nesga, um prenúncio de um dia melhor. Ainda sorrimos o sorriso mais triste, quando nem uma estrela se adivinha.
Com a cabeça na almofada lembramos os dias de puro sol que já tivemos e adormecemos na certeza que o melhor ainda há de vir.  

What a mess

Ás vezes fico na dúvida se é de mim que gostas, ou se é da ideia de mim. A sério que fico sem saber se gostas da pessoa que sou, do eu que sou, ou se é apenas do conceito do nós em ti e para ti.

Talvez se eu fosse outra que não eu e tivesses este nós também com ela, talvez fosse igual para ti e tivesses a mesma ânsia dela que tens de mim.

Quando dizes que não me queres perder, penso eu logo «nao é a mim, é a nós». Porque agora que abraçámos o nós, o deixámos crescer e corremos todos os riscos, agora é agarrá-lo o mais que pudermos. Pensas tu. Acho eu que pensas assim. Mas eu não.

Se tiver que perder o nós, perco. Se tiveres que desaparecer, desaparece o nós e não é igual se aparecer um outro tu qualquer. Porque não é da ideia de ti que gosto, não é da ideia de nós. Aliás, o conceito do nós é o que menos me apetece, o que mais me sufoca e me deixa a cabeça a tremer. 

É de ti que eu gosto, de ti, e é só por isso que há um nós.

Será que me consegues perceber?

domingo, 30 de outubro de 2011

Conversa de amigos

- Fugiu-me da mão e quando tentei apanhá-la já ia longe.
- Tens a certeza que foi assim?
- Então, se te estou a dizer... Bem que a chamei, gritei, implorei até.. E ela nada. Já não queria saber de mim, já ia com o vento, já se desprendia na chuva.
- Então e agora?
- Agora sei lá eu que vai ser de mim, assim, sem amparo nem razão, assim tolhido e perdido nas madrugadas, assim sem a mão dela na minha ao adormecer.
- Mas sabes porque é que ela se te desapareceu?
- Vá-se lá saber, ela também sempre foi um bocadinho assim, de inconstâncias e desaparecimentos. Mas é que desta vez foi pior, desta vez não volta, desta vez ja não a vejo mais. Nunca mais.
- E para onde será que ela se foi?
- Ai isso sei eu bem, isso eu sei das tantas vezes que me avisou, no meio daquela inundação toda de lágrimas, cada vez que nos perdíamos no meio do meio dos nossos dias, quando já nem nos conhecíamos, sabes? Ela bem me avisou que um dia se ia, que um dia me esquecia e que se ia nascer do princípio, à beira da vida dos outros que sabem o que é isso de ser feliz.
- Mas onde é isso exactamente?
- Ai, aí já não te sei responder. Nunca conheci ninguém que seja mais feliz do que eu sou sempre e cada uma das vezes que a minha mão toca a dela.

sábado, 29 de outubro de 2011

Arrumador-a-Dias

A príncípio olhava-o com desconfiança e dava mais três voltas se preciso fosse, só para não ter que parar o carro nos seus domínios. Incomodava-me o «conceito», incomodava-me a persistência do «ó vizinha não quer um lugarzinho?», incomodava-me o ar escanzelado, a barba por fazer, a roupa de côr indefinida, o olhar sombrio. O cheiro a tinto. E este incómodo tem um só nome: preconceito.

Em desespero de causa, por algumas vezes lá cedi a ficar no «lugarzinho» e atirar uma moeda com medo de tocar-lhe. Sim, porque isto vá lá saber-se que doenças, que bichezas e que caminhos já andaram por aquelas mãos.

Mas então, e não me perguntem porquê porque não faço a mais ínfima das ideias, lá comecei a dar por mim todos os dias a recorrer aos prestáveis, incansáveis e indispensáveis serviços do Xico, que é afinal quem manda na rua do hospital. Todos lhe falam, todos o cumprimentam. Há inclusivamente quem lhe deixe as chaves do carro o dia inteiro e ele lá vai fazendo perfeitos malabarismos circenses, em ruas impossíveis e com a polícia à espreita.

Ultimamente saía-se sempre com esta: «Ó Dótora, pode deixar aqui sossegadinha que Eles hoje não vêm cá, garanto-lhe.» Páro para pensar quem serão os Eles a que se refere com tanta solenidade e lembro-me dos senhores da Emel que de há uns meses para cá se entretêm a multar todo e qualquer menos avisado prevaricador. E respondo-lhe «Tem a certeza? Não me apetece nada mais uma multa..» «Ó Dótora, no dia em que não acreditar na minha palavra, deixa de olhar-me na cara». Sorrio, sem saber bem como reagir a tal sentença. E confio.

No outro dia chovia um perfeito dilúvio. O Xico lá me arranjou lugar. Baixei a janela, dei-lhe a prestação do dia e ele lá se foi sorridente debaixo do chapéu de chuva. E eu ali enfiada no carro, vidros embaciados, à espera que a chuva amainasse porque não há um chapéu que resista nas minhas mãos - sou o perfeito triângulo das bermudas das sombrinhas. Como já estava atrasada, decidi aventurar-me, encolhida em mim mesma, colada às paredes. E lá aparece o Xico, todo solícito: «O Dótora, mas então porque é que não me pediu boleia? Eu estava ali a a pensar, Mas então a criatura não sai do carro?, palavra de honra que estava - ai, desculpe, a Dótora criatura  - mas para quê isso Dótora, então a gente não estamos aqui uns para os outros? Ora essa».

E eu sorrio, contente porque ainda há cavalheiros.
Os porteiros do hospital olham irónicos para nós e comentam «Este sabe-a toda». E sabe mesmo.

Até dá pena vê-lo desperdiçado em tão mísero míster. Um dia demorei-me com ele. A minha mão lavada de preconceitos, apertou a sua. «Xico, porque andas nesta vida? O que se passa? Deixa-me ajudar-te». O sorriso dele fechou-se. «Ó Dótora deixe-se disso, não se atrase mas é» Eu insistindo, «Xico, pode ser que te consiga ajudar, conta-me a tua história». «A minha história é só minha» atirou-me de olhar cerrado, enquanto me voltava as costas.

Nos dias seguintes deixei de o ver. Já voltou há mais de um mês. Nunca mais me arranjou lugar e ainda ontem cheguei toda encharcada ao 5ºandar. 

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

História pedida 15 (por a Matéria dos Livros, filme de Joaquin Cortes): Dancing Days

O passo ritmado no palco. O som oco e fundo da madeira. Tum, tum tum. Seco, firme, preciso. O meu corpo no teu corpo. Escorregamos um no outro. Não: deslizamos. A música somos nós; a dança, o nosso respirar. Tum, tum tum. A tua mão na minha cintura; puxas-me para ti e eu entrego-me sem pedir mais nada.

A minha mão ampara o teu cabelo negro. Molhado. Colamo-nos, as minhas costas no teu peito, as minhas curvas nas tuas. E deslizamos batendo com força no chão. Tum, tum tum. A tua boca no canto do meu pescoço, a minha mão que cai no teu ombro.

Não respiro, não respiras. Tudo isto num só folego. Tum, tum tum.

A música pára, mas nós não. Ainda encaixados e num suspiro, guias-me para trás do palco. Não queres saber dos aplausos, nem dos encores. Finalmente tens-me tua e és só meu. O teu peito nu encontra a minha boca desgovernada. Os folhos vermelhos da minha saia sobem até ao decote, enquanto me enrolas uma perna em ti. Em cena, fora de cena. Os teus olhos dentro de mim. As guitarras recomeçam, esperam por nós. Perdemo-nos um no outro, sem um Ai. O palco espera-nos, eis-nos de volta. Molhados, cansados, consolados.

Antes a tua dança era dorida. Séria. Crispada. A pedir mais da vida. Agora que me encontraste dançamos assim. Só para nós, só a sentir. Sem querer saber se temos palco ou não. O teu olhar já não está cerrado. O teu olhar agora perde-se na música do meu ventre. O teu corpo na dança do meu. Só quero ficar para sempre assim. A dançar apaixonada e tu de sorriso pendurado em mim.


sábado, 22 de outubro de 2011

Canção de embalar

O meu mundo é pequenino.
Tem mãos pequeninas, pés pequeninos e dentinhos pequeninos. Mas tem os sorrisos e as gargalhadas maiores do mundo. Do mundo dos crescidos, quero eu dizer.
O meu mundo é doce e quente. É como o colo mais querido, a casa mais desejada.
O meu mundo gira à minha volta noite e dia, dia e noite e todos os dias me diz o quanto gosta de mim. Mesmo sem precisar de palavras.
O meu mundo é mágico. Dá-me forças desconhecidas, enche-me de alegria nos dias mais tristes. Faz de mim o que não sabia ser e encontra-me sempre que me descubro perdida.
O meu mundo são os meus meninos, que me olham numa transparência sem fim, que me agarram a mão a sorrir, que me levam ao princípio de mim.
O meu mundo é grande, é enorme, nele cabe tudo o que há de bom.
Estão a ouvir a música que o meu mundo tem? Sou eu com os meus meninos a cantar alto e bom som.
O meu mundo é infinitamente feliz. O meu mundo é meu.

Podem espreitar um bocadinho, gostamos de visitas inesperadas. Mas depois encostem a porta devagarinho e deixem-na bem fechada, porque o meu mundo é precioso, não quero que se perca nada de nada.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Quatorze anos

Á porta da minha escola havias tu. Chegavas, sentavas-te no lancil, puxavas um cigarro e ali ficavas. Parado. Quieto. Mudo.

O cabelo preto todo puxado para trás num arrepio gelatinoso. As mangas a roçarem os bicos dos teus joelhos que espreitavam nas calças coçadas. Um assobio entre as mãos para as meninas que passavam. E as tontas que apressavam o passo com medo do que se poderia seguir. E tu na tua.

O tempo passava e não arredavas pé. Apareciam os das motas, os dos carros, os do liceu de baixo e até alguns pais que insistiam em ir buscar os filhos envergonhados.  E tu ali, de cigarro entre os dentes, de assobio entre as mãos.

Nós raparigas não sabiamos bem o que pensar de ti. Inventávamos-te histórias dramáticas, romances novelescos, crimes impunes.

Mas tu esperavas a Professora Lúcia, que, sempre que passava, baixava o olhar para não te encontrar. Apaixonaste-te pelos seus grandes olhos dourados e pernas intermináveis. Acabaras o liceu no ano anterior, depois de vários anos em repetição - quer fosse por não teres que fazer na vida, quer fosse para demorares-te na contemplação da Professora.

Isto contaste-me tu naquele primeiro dia em que ganhei coragem, sentei-me apertando a saia entre os joelhos e te fiz todas as perguntas. E em que surpreendentemente me respondeste. Não sou mais que uma miúda ao teu lado, mas a tua mão agarrou a minha quando te procurei entre os cigarros.


Ás vezes na correria dos nossos corpos nus na cama da minha mãe, oiço-te a chamares-me Lucia. Mas eu não me importo. Acho que um dia gostava de ser professora também.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Um dia


Corres o meu corpo, fechas-te em mim.
Abres as mãos, digo-te Ai..
O calor que guardavas, já não sei por onde vai.
És rio, és cor, és o inteiro que há em mim.
És as palavras que acabaram, as que se quedaram a meus pés
Letra a letra desnudadas, trazidas no fim do que sou.
Agora sei-te aqui, agora sei-te meu.
Larga o lençol lá fora, estende-o à janela
Deita-te em mim de manso, leva-me para perto do que és.
Sigo-te de longe, visto-me ao espelho
Despida do que fomos, voltando ao que era.
Insinuo-te a mão, encostada à ponta de ti
Solta da vida que me escreveste, encontro-te em tudo o que ja és.
Um dia vou ter-te só meu, um dia vais ser assim
Pensamento desencontrado, vendaval que nasceste em mim.

Adeus


Tocas a beira do palco. Do teu palco. 
Debruçada em ti, vês aquilo que és. 
Sonhas alto, voas mais longe, queres o tanto que ainda adivinhas para o teu mundo. 
A mão estendida aos céus, a ponta do pé que roça o chão, a delicadeza de um momento que é só teu. 
O sorriso que trazes ao peito, ao colo, preso para sempre em ti. De ti. 
Boneca que já foste, ainda és em tudo o que cá deixas de teu. 
Descansa agora doce bailarina, ouve a tua música de embalar...
O palco está lindo e pronto, está na hora de brilhar.
Para a Inês

sábado, 15 de outubro de 2011

História pedida 14 (por Tita e Maria: Profiterole e La Bohéme de Charles Aznavour)

O friso dourado da cadeira condizia com o friso dourado do balcão, que por sua vez levava até ao friso dourado da ombreira da porta, que levava então ao dourado do letreiro onde se podia ler, alto e bom som, «Chez Flô».

Todas as últimas quintas-feiras do mês reuniam-se ali a contar das semanas que passaram. O grupo das professoras reformadas animava a sala tantas vezes vazia. O restaurante da Floripes – perdão, da Flô, como insistia que lhe chamassem – estava cada vez mais vazio e nem os seus afamados profiteroles garantiam a clientela de outros tempos.

As quatro professoras agora já grisalhas, gastavam ali sempre umas boas duas horas a esquecerem o tempo que passara e a encher o Chez Flô de gargalhadas roucas e sinceras – excepto a da Professora Isabel, que tinha uma gargalhada asmática que se ouvia num silvo, enquanto se tornava roxa de tão branca que sempre fora. Floripes deliciava-se a ouvir os detalhes que ritualigiosamente enchiam a conversa cronometrada. Porque todas continuavam com muito que fazer, sem tempo para nada, ou pelo menos assim o anunciavam. A Professora Ilda, alentejana de gema, de sotaque cerradíssismo apesar da vida inteira que vivera ali em Setúbal, trazia sempre um novo episódio. Até a Professora Ana Luísa, de ar seco e sisudo com o seu cabelo curto e másculas camisas de flanela, se agarrava ao braço da roliça Professora Luzia, já não aguentando de tanto rir.

A Professora Ilda hoje chegava de ar esbaforido, acabada de chegar de Beja: Querem lá saber migas, vim direitinha do mê médico lá em Bêja para vir ter com vocemessês e nã é que venho muito mais aliviada? Falei-lhe daqueles aflições que se me dão, aquele sobressalto que me dá de baixo para cima e que parece que me vai sair pela cabeça fora e atão nã é que ele me disse que isto nã é nada, que é mas é um pêdo que nã sabe se há-de sair por baixo, se por cima..? Já viram que até os pêdos têm destas indecisões...?» E o Chez Flô num fartote de rir.

Floripes sorria atrás do balcão. Gostava daquela irmandade. Faltava-lhe uma cumplicidade assim, alguém a quem contar de si. Um dia haveria de contar-lhes da sua história. De quando, na verdura dos vinte, foi ao encontro da querida prima Margot em Paris, irmã de sonhos e promessas. Contar de como se perdeu de amor pelo Philippe, pintor imberbe, que durante aquele Verão ganhava os francos para o café a pintá-la desnuda e desprendida nas promessas de uma vida a dois nas margens do Sena. Vida essa que se despencou no dia em que la douce Flô, como Philippe a havia re-baptizado, o descobriu a vender quadros que mostravam uma nudez que não a sua. Arrumou as malas e rumou a Setúbal. Só chegando escreveu uma longa carta desbotada para a sua soeur Margot a explicar que afinal a sua vida seria à beira do Sado.

No rádio que enchia o restaurante de música francesa dos anos 60 e 70, passava agora a música «La bohéme». Sorriu um sorriso triste enquanto se decidiu a acabar com o ultimo profiterole. Afinal a vergonha já a perdera há muito. Precisamente na primeira vez em que se despiu para um desconhecido na noite dourada de Paris.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Conversa de comadres

«Anda lá, deixa-te de coisas.»
«De coisas?»
«Sim, deixa-te de pieguices, mariquices, comichosices e outras "ices" que tal.»
«Mas porquê, se é assim que eu sou?»
«Porque não te fica bem, faz-te velha, seca, sisuda. Consumida. Olha lá que já nem tens barriga... e a barriga que é uma coisa que enfeita tanto!»
«Mas isso é porque perdi a fome. Perdi a vontade. Já não tenho vontade de mais nada desde que ele se foi.»
«E então? Foi-se, já se sabe e já estava mais que visto. Só tu é que não querias ver, mulher. Há que tempos que ele já estava mais para lá do que para cá.»
«Para o lado da outra, queres tu dizer.»
«Pois, isso mesmo, vês como tu sabes? Vá, anda, arranja-te, enfia um camiseiro daqueles teus todos afiladinhos, de botãozinho dourado rebrilhante e a golinha certinha, que te fica bem e até disfarça essa magreza toda. Credo mulher, que pareces um cão com fome.»
«Cadela, neste caso»
«Pois, está claro. Mas cadela é a outra que te levou o homem para parte incerta, ao fim destes anos todos. Ai o que tu aturaste mulher, só Deus sabe. E eu também sei, que isto ouve-se tudo por estas paredes fininhas. E tu tudo ouvias e calavas, porque te lembravas do que prometeste há bem mais de 30 anos lá à frente do Senhor Prior, que Deus o tenha, só porque era suposto, só porque devias e aquele bruto que te falava mal de dia e de noite, a sopa que estava sempre sem sal, as camisas mal passadas, raios partam o raio do homem que nunca estava satisfeito e tu toda "sim,querido", "está bem meu amor" e ele sempre pronto para te amarrotar, torcer e tu toda doçuras e meiguices porque era o teu homem e nós até fomos educadas assim. E agora, ao fim destes anos todos, troca-te por uma dessas serigaitas brasileiras que desaguaram aqui e por todo o lado e agora que estás velha e seca, agora que ninguém te vai querer, credo mulher é que nem uma barriguinha já tens para amostra, agora vais tu ficar sozinha nesta casa grande demais para ti, silenciosa demais e tu aqui sem ninguém para te encher os dias a queixar-se do raio da sopa nem das camisas.
Olha, sabes que mais, vamos mas é ficar aqui sentadas um bocadinho, que agora de repente fiquei sem vontade de nada. Se calhar foi a feijoada do almoço que me caiu mal».

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Retouner à Dinard

C’est la mer qui m'a changé. C'était le bleu qui m'avait tué.
Les vagues qui se retrouvent sur le sable gris sont des mots que tu m'as dit. 
Viens ici, tu m'as dit, ne m'oublies pas, je t'ai répondu. Et nous avons fait la dance la plus belle, la musique parfaite, les rêves les plus purs. 

Un jour tu sauras qui c'était toi ma vie. Je t’attendais dans nos mots, nos rencontres, nos lettres. Nos vies qu'on a vécues. 

Pour te retrouver ici, à notre plage, le sable mouillée sous nos pieds et toi en disant «viens ici mon amour». «Finalement» je t'ai répondue et maintenant tu peux pas me oublier, ni un jour, ni un moment. 

Parce que je suis à toi depuis les jours qui tu as oubliés… mais toi, tu seras finalement à moi aujourd'hui et tous les jours que les vagues touchent notre sable gris.

sábado, 8 de outubro de 2011

Inês

Hoje sou eu a escrever. Eu, mas mesmo Eu. Não que em todas as histórias não exista sempre um bocadinho de Eu. Mas esta vou ser eu do princípio ao fim. Esta não é uma história de nós. Esta é uma história minha.

Começo pelo fim. A Inês entrou ontem em coma, no decorrer de uma cirurgia que correu mal. Muito mal.

Teve a primeira filha há 5 meses. Tem um feitio que não tem nada de fácil. Sempre gostou de dar espectáculo, da ribalta, de dar que falar. Tem uma escola de dança porque o que mais gosta de fazer é dançar. Principalmente com o seu amor, pai da sua filha, parceiro em tudo. Não o conheço. Mas a ela, sim.

Depois de nos termos cruzado em crianças no mesmo colégio, reencontrámo-nos adolescentes no liceu. Ambas acabadinhas de chegar e sem conhecer ninguém. E assim nos tornámos melhores amigas. Com o tempo formámos um grupo de cinco raparigas inseparáveis. Cada uma mais diferente da outra. Nunca percebi como aconteceu, nem como durou três anos. Os anos em que nos tornámos mulheres. Baptizámo-nos com pseudónimos bem característicos da piroseira da adolescência. E com fundamentos que na altura nos pareciam bem racionais. Hoje parecem uma grande tolice. A Flor, a nossa doce e sensivel, a Estrela que ora brilhava radiosa, ora se entristecia e apagava, a Inês a Lua, porque nunca lhe conheciamos bem todas as faces e eu a Sol. A que falta é a que nos nomeou e nunca conseguimos arranjar outro nome que não AnaSus. Pelo menos que eu me lembre.

Passado um par de anos, eu e a Inês antagonizámo-nos. E isto é suavizar a coisa. Ela lembrou-se de meter-se entre mim e o meu apaixonado (mais tarde namorado) e eu não perdoei. Depois de um sermão de horas em que ela nem abriu a boca, nunca mais lhe dirigi palavra. E nestas coisas eu era definitiva.

Não fosse esta modernice do FaceBook e passaria bem sem saber mais dela. O que não quer dizer q não me lembrasse da sua existência. Mas não me fazia falta. Depois, com o advento da minha entrada no FB, lá nos (re)descobrimos e através de fotografias e comentários mútuos, até parecia que nada acontecera. Old friends. Fui sabendo da gravidez, da enorme felicidade com a sua 'princesa' e vendo as magníficas fotografias dela a dancar - totalmente entregue e apaixonada -, das suas aventuras em férias e daquela força toda que há dentro dela, que bem se vê em algumas imagens que me parecem descabidas e despropositadas por estarem tão longe da minha realidade. Mas ultimamente tenho-me descoberto a 'julgar' muito menos. Se calhar é isto crescer.

Não consigo deixar de pensar na Inês. Em coma. Apagada, fechada. Longe. E a filha a precisar tanto dela. E estou em ânsias pelo dia em que vou chegar ao FB e encontro no seu mural : Back from the dead, seguido de muitos smiles. Ou uma frase assim, mesmo à Ines. Uma tirada carregada de show, como ela. E que me faça respirar de alívio e pensar se não seria boa ideia voltarmos todas aos dias em que não nos largávamos as cinco e dávamos por nós felizes em cima de um muro, a cantar para quem quisesse ouvir "You are my sunshine", só porque sim.

Só porque a Inês voltou e está por ali à procura de um palco qualquer.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Reforma antecipada

Estavam sentados lado a lado. Quase que se tocavam. Quase. Entre eles um suspiro. Um suspiro como fronteira, muro, limite. Era um suspiro espesso, pesado, denso. Com muitos anos dentro.

Começaram ao mesmo tempo, no mesmo dia, na mesma hora, na mesma cirurgia. Ela com as mãos a tremer. Coisa rara, uma mulher cirurgiã. Ele com o coração num sobressalto. Coisa rara, um enfermeiro instrumentista.

Ouviram as mesmas risadas, as mesmas palavras trocistas, a mesma arrogância. Juntos, sem precisarem de conversas nem muitas palavras, destroçaram os preconceitos, os escárnios, os medos. Aprenderam a entender-se só com o olhar. Por baixo da roupa verde, da máscara que tornava todos iguais quando no bloco e sob a luz gélida do pantoff, só precisavam do olhar para terem longas conversas. As cirurgias até hoje, ao fim de 31 anos, ja tinham o seu ritmo próprio, o seu método, a sua ciência. Exacta. Ela não precisava pedir o bisturí ou o fio de sutura. Já o tinha na mão estendida.

Assim como ele a apertou num abraço no dia em que a mãe dela morreu. O abraço que o corpo dela tanto pedia, os olhos suplicavam, mas as palavras calavam. Ou quando ela lhe tocou a mão no dia em que a mulher o deixou. A mesma mão que fugiu do enlace dele quando a tentou prender. Era um para sempre longínquo de mais e os filhos dela ainda pequenos demais.

Hoje era o último dia de trabalho. A reforma chegara para os dois. Agora e aqui o seu casamento de todos os dias acabava.A despedida tambem não precisou de palavras. Só um olhar pesado, suspirado, que disse tudo.

Mas eles ainda ali estão. Demorados, sentados, quase colados. Sem vontade de ir. Sem quererem acabar.

Sem coragem para começar.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

História pedida 13 (por Helena Sacadura Cabral, frase para começo da história): RITUAIS


Era uma tarde de Outono, daquelas em que, por vezes, a nostalgia se apodera de nós. Não de mim, que gosto da estação, do sol baixo e do céu rosa que lhe são tão comuns.
Agarrada ao volante, nem eu própria sabia porque me dirigia ao Guincho.

O volante tremia nas minhas mãos e o cabelo voava em todas as direcções despenteando o que ainda agora a Benilde, do pomposo Benilde’s Hair, esteve a acertar.
Felizmente hoje não era dia de vendaval no Guincho, daqueles em que se confunde a estrada com as dunas, de tanta areia pelo ar, e em que até os caniches levantam voo. Como dizia o meu filho mais velho. O irmão colava o nariz ao vidro à espera de ver tal insólito. E o mais velho a rir-se.
Não sei porque me lembrei disto agora, nem porque vim aqui parar. ´
Mas hoje está a ser um dia estranho, um dia fora de mim. Acordei assim à procura de uma mão que me agarrasse ao acordar. Como faziam os pequenos quando acordavam de manhã e diziam que me iam visitar. E eu a encenar que dormia, de mão fingida à espera de nada, feliz por encontrá-los novamente ali todas as manhãs. Rituais. Acho que é isso que me fez falta esta manhã. Os nossos rituais.
Eles agora têm os deles, um com os filhos, outro com a sua vida. Perdemos os nossos, ganharam os deles. Há dias assim em que me fazem falta, em que esta liberdade toda que agora tenho nas minhas mãos sabe a vazio e a falta de. A falta de coisas que agora não sei nomear. Apenas falta de.
É certo que ganhei tempo e espaço para o que sou e para tornar-me cada vez mais eu. Mas também para encher-me de medos e sustos. Por eles. Os meus meninos-grandes a quem tanto quero.
Paro no bar do Guincho para um sumo.  Sim, lembro-me, tínhamos este ritual no primeiro dia de Outono.  A despedida da praia. Sempre aqui no Guincho, com chuva ou sol. Eles felizes porque já adivinhavam as castanhas a saltarem na nossa lareira e a aproximação do Natal.
Perdemo-nos na adolescência deles, nas vidas atribuladas, nas vontades de mais que sempre os encheram e que ainda hoje não lhes dão descanso. Aos meus meninos-grandes. Devia ter aproveitado para trazer o meu caderno de escrever. Pelo menos fazia-me companhia.
Hoje estou mesmo fora de mim. Hoje faz-me falta alguém ao meu lado. Hoje que é o primeiro dia de Outono, encontrei-me aqui à procura do nosso ritual esquecido.

O telefone toca. A Rita diz-me que já está no estúdio à minha espera para começarmos a gravar o primeiro do nosso novo programa. Todas as terças. Ainda me meto nestas aventuras. Tenho tempo para isso. Tenho espaço. Tenho vontade de um novo ritual. E já sei qual vai ser o meu tema de abertura de hoje. Vou falar do caniche que acabei de ver a voar no Guincho.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

História pedida 12 (por UmJeitoManso - verso de M. Rosário Pedreira): Anda

"Quantas pessoas caminham na minha direcção? Quantas me descobrem por entre a multidão e pousam os seus olhos inteiros nos meus olhos?" M. Rosário Pedreira

Parte I

As ruas cheias de gente
A porta mal fechada
O vento que sopra quente
O brilho do céu na estrada

Segue só e em si abraçada
Os olhos dos outros prendem-na num fio
No passo demorado e na vontade de nada
Enchem-na de silêncio e arrepio

É mais uma no meio de tantos
à espera de ser encontrada
Agora a perder-se em prantos
Leonor vai pela pela estrada

Parte II

Pouco formosa e nada segura, Leonor vai pela calçada. Procura ansiosa o número 23, que tão bem conhece. Desvia o olhar do porteiro. Não tarda estará enrolada no sofá encarnado, no seu cais, e deixará de sentir os olhares de todos os outros em si. No seu corpo, na sua pele. A invadirem os seus olhos, a devassarem o que há bem dentro de si.
Agora recostada, de pés descalços enquanto ele a olha do canto da sala. Conta-lhe mais uma vez do que lhe custa andar no meio de outros, de outros que não conhece, nem quer conhecer. Uma coisa inexplicável, bem sabe, mas é o que a arrepia ao passear no meio de toda aquela indiferença que ali se une, nos passeios, nas estradas, cheios de gente que corre, de olhar vazio e respiração apertada. A tocarem-se sem quererem. A tocarem-na, a invadirem-na. Ainda se alguém lhe perguntasse o nome, segurasse pela mão enquanto corriam juntos para um destino qualquer, ainda se tivesse alguém que a quisesse por perto, a quem ela pudesse contar das suas coisas e das suas ânsias... Mas não. Todos correm e nem a vêm. Olham-na, enterram a sua frieza nela, mas não a vêm.
Se não fosse aqui este nosso tempo, esta nossa calma, não sei que seria de mim, diz-lhe ela. Ele nada. Aqui ao menos posso falar de tudo e sinto que esses teus olhos não estão vazios e me ouvem até ao fundo. Aqui consigo respirar como é suposto, conto-te disto que me sucede e sei que tu entendes. Pelo menos ouves-me, sem correr. Sem correres. Aqui já consigo demorar o passo em que levo a minha vida e sei até que me tocarás a mão sempre que eu estiver a precisar. 

Ele olha para o relógio. «Leonor, o nosso tempo de hoje acabou. Sugiro que passes a tomar o ansiolítico também ao almoço. Podes marcar hora para a semana ali junto da enfermeira. Por hoje é tudo».

Parte III

No tempo que passas preocupada com o hoje, já o podias ter apanhado. Entre as mãos. Apertavas, cheiravas, tornavas teu. Nosso. De mansinho encostavas-me ao teu peito e deixavas-me estar.
Os ponteiros correm e se tu os parasses só por um instante, perceberias que afinal sou eu quem procuras. Os meus olhos já encontraram os teus no meio das gentes todas que passam entre nós.
Se me deixares vou olhar-te bem no fundo de ti, bem longe do que mostras, bem perto do que eu te quero.
Leonor, se parares por hoje, se me deixares a tua janela aberta, trago-te em braços, vivo-te em palavras, guardo-te bem dentro de mim.
Olho-te mais uma vez no teu passo desacertado enquanto te espero aqui, na minha porta do 23. Aqui estou todos os dias à espera que seja hoje que os teus olhos param nos meus, que ouves os versos que fiz e que sorrias enquanto tos segredo de mansinho ao ver-te passar.
Hoje quando saíres vou fazer-te parar.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Conversa a dois

Vieste?
Vim.
Ver-me?
Ver-te.
Porque demoraste?
Faltavas-me tu.
Faltava-te eu..?
Sim. Faltavas tu a dizer-me para vir.
Pensei que entre nós não eram precisas palavras.
Pois não. Mas às vezes sabe bem.
Que me querias ouvir?
Que me queres.
Quero-te. Muito. Tanto.
Não chega. Quero mais.
Mais?
Quero a tua mão na minha. Leva-me até ti.
Espera. Faço antes assim. Encosta a tua mão aqui no meu peito. Sentes o que eu sinto quando te tenho perto?
Sim.
Quando estás longe, pára. Em suspenso.
Tens razão. Entre nós não são precisas palavras. Há mais. Bem mais.
Até dá medo, sabes?
Medo?
Desta perfeição.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

On s'en va

T’arrives et je te demande rien
On se rencontre chez nous
Je sais pas ce que tu veux
Notre vie n’est la

Rien pour te donner
Aucun mot pour te dire
Chaque jour on se perd
Notre amour n’est la

Tes mains sur la table
On sait pas quoi faire
Nos yeux sont pas les mêmes
Notre monde n’est la

Adieu mon cher
Tout est changé
Notre vie, notre amour, notre monde
Rien pour te donner

sábado, 24 de setembro de 2011

História pedida 11 (por Henrique Antunes Ferreira - sem tema): Coisas Simples

A Senhora Dona Teresa nasceu fidalga em nome e condição. Além dos oito nomes que lhe enchiam o BI e romanceados cartões de visita, corria-lhe no corpo pálido o sangue azul de abastados bastardos da realeza francesa.

Filha de Conde e Condessa, crescera no casarão do Restelo a arredondar a boca para dizer «sófá» (assim mesmo com dois acentos, assassinando a gramática portuguesa), «piqueno» e «retrete». Já para não falar da facilidade em que dividia o mundo entre pessoas «civilizadas» e pessoas «simples».

Cresci a acompanhar a minha mãe a casa da Fidalga. Sentava-me no chão ao lado da tábua, enquanto via passar os vestidos de popeline, seda selvagem e cetins coloridos.

Corria entre a criadagem que a Senhora Dona Teresa guardava um misterioso segredo. Volta não volta desaparecia por umas boas horas, normalmente ao final do dia. E começaram a reparar que o ensebado, encardido e ensonado Jardineiro, velho-relho que mal se aguentava nos canivetes, desaparecia também pela mesma altura.

Um dia resolvi-me a resolver este mistério irresolúvel. Não a perderia de vista, de ouvido. Compensou. Enquanto sentada na sombra das buganvílias, o Jardineiro passou de levezinho. «Está tudo preparado. Lembrei-me: será que a Senhora não prefere ir para um hotel?». Silêncio aprofundado. «Não. É mais arriscado».

Pois então não é que a Fidalga e o «simples» do Jardineiro andavam mesmo na boa-vai-ela-e-mais-ele?? Esperei. Ao chegar das 18h levantou-se cautelosa, deixou o livro no banco de mármore, foi até ao fundo do jardim e entrou no barracão das ferrugens do Jardineiro.

Deslizei até ao barracão e em pontas espreitei por uma fresta. A Senhora Dona Teresa desfazia-se em palavrões de fazer corar as pessoas mais «simples»; o Jardineiro num desasossego. A televisão a passar o jogo do Benfica, no chão assentadas garrafas de minis e cascas de pevides. E ela vermelha. A chamar pelo Glorioso. Pois então que a Senhora perdia a fidalguia, a pose e o esmero com o seu Benfica. Mistério resolvido. Afinal era tudo uma questão de simplicidade.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Curta metragem

His name was Jack. He was a jerk. Her name was Annie. She was a baby.
Jack loved Annie but not that much. She kind of liked him, but not so much.
Somehow they got together. Somehow they got married. And then came their children. And then their grandchildren.
Then the winter came and took Jack away.
And now Annie lingers all day long at the window wondering what happened to her life after all.

Slow Motion

De repente uma vontade súbita, incontrolável e urgente de dançar contigo. Dançar um slow, como dizíamos no antigamente.

Agora os miúdos não fazem ideia do que é um slow. Como é que começam os namoros nas festas e nas boites? Não consigo imaginar. Se calhar é por telemóvel, sms's, mms's e assim. Os beijos, os primeiros beijos, até devem sair abreviados, como as siglas com que escrevem as novas declarações de amor, tudo a correr, tudo com pressa.

Mas então que de repentemente me deu uma vontade doida de estar a dançar contigo, num espaço e tempo só nossos, com uma música que fosse a nossa, embrulhados no nosso silêncio e no que estaria para vir. Em tudo o que estaria para vir de nosso.

Podia ser assim a nossa primeira noite juntos. Como cantava o Godinho, o primeiro dia do resto das nossas vidas.. O dia, a noite em que tudo se consagraria, os olhares, os gestos, os toques, as promessas.. A noite em que seríamos, finalmente, um do outro.

E a música a tocar e nós a dançarmos devagarinho, bem colados, bem encaixados, talvez eu a murmurar a nossa música no teu peito, talvez tu a prenderes-me com a boca a curva da minha orelha, talvez as nossas mãos um no outro, nas estradas um do outro e a certeza de que a partir desse momento estávamos apenas a começar.

Devagarinho, devagarinho, como num slow.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Eras tu

Assim chegaste tu, suavemente, com os teus pézinhos de perlimpimpim, como eu passei a gostar de dizer, nesta minha vontade de criar palavras novas, carregadas de sentido, tanto que uma só palavra carregue o sentido de duas ou três, de passados, sentimentos, de tal forma que nos deixe a pensar. Como aquele escritor, que se farta de inventar e que tanto me deixa a magicar. «Esferográvida», «a lembrança encostada», e sei lá que tantas outras mais.

Gostava de ter esse dom, essa mágica, de criar palavras novas, palavras pensantes que nos deixem de cara à banda de cada vez que as lemos e não conseguimos pereber como é que ninguém se tinho lembrado delas antes.

Mas, como se escrevia, assim chegaste tu, doce, docemente, embrulhado nos teus silêncios, com pézinhos de perlimpimpim, de tão leve, dessa tão insustentável leveza do seres tu, acercaste-te de mim, sopraste-me qualquer coisa que não percebi na boca do meu ouvido e tal como vieste também te foste. Pois, esses pózinhos que deixaste no ar, com o teu rasto, o teu cheiro, a tua leveza é que foram para mim uma promessa do teu regresso, do certo prazer com que te abraçaria brevemente.

Pois foi assim que esperei e esperei, entre longos suspiros assobiados, divagações aivadas e textos mal paridos. E pois foi assim que vieste, quando eu já não te esperava mais. Mas já não vinhas com os teus pézinhos de perlimpimpim, a tua insustentável delicadeza, nem o teu cheiro a ti.

Esqueceste-te de entrar doce, docemente, como quem chama por mim, de te vestires do teu perfume a ti, a anjo caído dos céus e apartado nos meus braços e dos teus sussuros suspirados, enquanto me davas prazer até eu não querer ou poder mais.

Queria-te como antes, com a tua insustentável gentileza, pluma caindo do céu, pôr do sol no fim da linha, transparência absoluta, manso, mansinho, de olhos abandonados.

Mas isso já não eras, sei que já não voltarás a ser, porque quando o foste eu estava de luzes apagadas, no meio da escuridão do silêncio, escondida no meu e teu mundo, alheia aos ventos e às marés. E por isso sei que não te vi como és.

Ando às voltas para achar uma palavra que me ajude a explicar isto que se me sucedeu. Não consigo lembrá-la nem inventar uma nova, carregada de sentido que faça sentido. Nem mesmo com estes teus pózinhos de perlimpimpim.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Renascimento


Perdi-me algures no meio de mim. No meio da descoberta de mim. Perdi-me e agora já não sou quem pensava que era.

Estou tão feliz. Tão infinitamente feliz. Cada vez que te sinto crescer cá dentro. Cada vez que me mostras tão claramente que existes, que finalmente existes e eu anseio por aninhar-te nos meus braços. Estou tão feliz. Espero que apertar-te contra o meu peito seja o suficiente para o outro lado de mim sossegar. Porque - a sério -, só a ideia de ti me faz sorrir. Sinto-me feliz, a voar quando te sinto e com o aproximar da tua chegada.

Mas depois não percebo nada do resto. Não percebo nada do resto de mim.

O meu amor por ti já é tão grande, tão imenso, tão inteiro e perfeito...como é que ainda tenho espaço para estas confusões, estes labirintos, estes espaços sem saída? Fazes-me falta.

Ás vezes penso que há uma explicação para trás, bem para trás do hoje, aqui e agora. Porque não sinto que haja maldade em mim. Pelo contrário. Mesmo. Mas depois faço e torno a fazer e não consigo contornar este eu em que me tornei, ou estou a tornar, ou sou.

Espero que seja um eu passageiro. Um qualquer processo tardio de crescimento. Uma qualquer descoberta perdida de mim, que acabe quando te tiver finalmente nos braços e sorrir o meu sorriso mais feliz para ti.

sábado, 17 de setembro de 2011

Em jeito de agradecimento

Estou finalmente aqui sentada no alto de mim vazia de palavras vazia de pontos vazia de olhares só a querer parar a querer sossegar porque este dia está a chegar ao fim sem parar sem parar um instante que fosse na correria do tempo que passa voa vai-se e só agora um bocadinho de mim para mim no silêncio da casa que dorme das paredes que respiram devagar suspiram antecipando o novo dia que não tarda a chegar carregado de minutos e segundos que não param nunca de acontecer e eu lá vou seguindo vivendo respirando passando e estranhando as tantas vezes que sorrio as tantas vezes que agradeço por mais um dia mais um dia assim no meu mundo corrido vivido querido sem espaço sequer para respirar mas é bom assim gosto assim quero assim. Obrigada.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Fadinho dos apaixonados

Queria-te aqui, aqui, aqui.
A tua mão na minha
a minha na tua
e ficarmos assim, só assim.

Deixávamos o tempo escorrer, deixávamos o mundo rodar,
deixávamos tudo acontecer
e nós só assim, assim aqui a sonhar.
Deixa-me dizer-te
Deixa-me beijar-te
Deixa-me querer-te
Deixa-me tocar-te
no fundo, no fundo de ti
e saber que, afinal, já te senti

Enrola o corpo no meu
esquece o que está lá fora
entrega-me tudo o que é teu
não penses mais, agora

E encosta-te, aquece-te, perde-te
leva-me por aí fora

Mas não me percas, não me deixes
Afinal não te quero só assim
Quero ainda mais, quero tanto mais
de ti para mim

Meu doce
minha paixão,
menina eu fosse
para caber ainda na tua mão

No autocarro

"Entao não dizes nada do meu cabelo novo? Está curtinho.."
"Esse cabelo não é teu. É meu"
Ela aperta-se ainda mais no peito dele. Sorri.
"Mas tu puxas-me o cabelo, só o tratas mal.."
"Por isso mesmo é que é meu. Para eu fazer de ti o que quero".
"Qualquer dia corto-o mesmo curtinho, de máquina e tudo só para tu já não o poderes apertar"
"Eu vou arranjar sempre maneira de te puxar para mim"
Ele não vê, mas ela continua de sorriso pendurado.
Silêncio.
"Tenho saudades do teu corpo."
Suspiram. Os dois.
"Ja te expliquei.. O problema não és tu, sou eu. Deve ser uma fase ou assim.. Depois passa."
Silêncio
"Mas sim, gosto do teu cabelo assim. Fica-te bem"
Ela não o vê, mas ele já não sorri.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

História pedida 10 (por blog A Minha Travessa do Ferreira) : O Amolador de Facas e Tesouras

Era uma vez uma Maria de Fátima, uma Fátinha qualquer, uma Fátinha como as outras, que se debruçava à janela a ver os que passavam e se passeavam pelas ruas de Belém.

Olhava e rebolava, suspirava e arfava e voltava a entrar para o seu Zé, um Zé qualquer, um Zé como os outros. Voltava a sentar-se junto a ele, os dois colados, talvez dessem as mãos, talvez suspirassem em uníssono, talvez se deixassem assim ficar até o dia acabar.

Mas esta Fátinha tinha o coração num sobressalto, nem mesmo a respiração pesada do seu Zé a conseguia acalmar, os seus olhos não paravam de tilintar, os dedos de saltitar, a boca de abrir e fechar. O coração quente, as mãos suadas, mas a pele gelada.

Esta Fátinha não se cansava de pensar e repensar e moer e remoer e dar voltas e meias voltas, os neurónios fervendo, os cabelos caindo pelos ombros, o cheiro a suor do corpo colado ao do seu Zé, e que nunca mais chegavam as malditas 5 horas, 5 menos um quarto e que vai de volta ele podia passar mais cedo e vai na volta e podia adiantar-se, apressar o passo, chegar antes da hora de sempre, passar uma vez mais debaixo da sua janela, piscar o olho para o alto do seu 2º andar e vai que ela não lá estava, vai que ela estava colada ao lado do seu Zé e não via?

Por isso mais uma vez se levantava, mais uma vez corria para a janela, corria sem correr, para o seu Zé não perceber, para não ter que lhe voltar a responder, fugindo dos seus olhos mortiços, que não era nada, era o calor, - eram mas é os calores! -, que vinha arejar, apanhar ar e mais uma vez ficava na janela, olhava lá para o alto de onde o outro haveria de aparecer, na ânsia de o ver chegar, de o ver passar vagaroso debaixo da sua janela e atirar uma piscadela de olho, em jeito de piropo, para o ar.

E nisto andava Fátinha, senta, levanta, anda, rodopia, espreita, suspira até que chegam as 5 menos 5 e aí decide postar-se à sua janela sem arredar pé, o seu Zé pede-lhe uma cerveja, ela diz, já vai Zé, não tira os olhos lá do alto, o coração a saltar, a vontade de gritar por ele, onde estás, porque não apareces meu malandro, o Zé a gritar, traz lá o raio de uma cerveja Fátinha, ela impacienta-se, o raio da flauta que nunca mais se ouvia, então Fátinha ?, já vai Zé, e então parece que sim, que o está a ouvir, mas é preciso muito para me ires buscar o caraças de uma cerveja Fátinha?, já disse que já vai Zé, já vai!, vê-o ao longe, em passo dançado, abraçado à bicicleta, debruçado sobre a pedra de afiar, mas Fátinha vê-o, sim, é mesmo ele, e bolas Fátinha mas do que é que estás à espera?, e ele aí vem, de andar compassado, animando a calçada, passa por baixo da sua janela, olha para cima, deita um olhar guloso à Fátinha, a Fátinha que empoleirada lá no alto está roxa que nem um rábano, pisca-lhe o olho malandro, redondo, castanho, ela sorri o seu sorriso de moça atoleimada e ele lá segue no seu passo dançado, confiante que haverá fregueses, anunciando-se com a sua música soprada.

Fátinha suspira, olha e rebola, dá meia volta, vai lá dentro, encosta a cerveja gelada ao peito escaldante, volta bamboleante, Toma Zé aqui está a tua cerveja, e assim se deixam ficar, colados, suados, até o dia acabar.

SMS's

«Que tens?»
«Saudades»
«Anda»
«Onde?»
«A mim»
«Apetecia-me que dissesses: para um sítio nosso»
«Como assim?»
«Uma casa nossa»
«Sabes que não podemos»
«Mas eu quero à mesma»
«Não se pode ter tudo»
«Pois não, bem sei»
«Mas querias muito?»
«Quero (tu não?)»
«(não vale a pena sequer pensar nisso) Minha Querida»
«Meu amor»

terça-feira, 13 de setembro de 2011

The Love Song ( to all my international love(r)s )

Thought of you last summer
Thought of you last rain
Thought of you every moment
Thought of you every day

Leaning against my chin
You told me this gentle song
Nearby my burning skin
You teached me how should I go along

So the path you chose for us
Is what will make me stay
Keeping me from running, thus
I should really hide away

Then come with me in the morning
Come along our way
Touch me every quiet moment
Tell how will we play

Your hands against my skin
Laugh at me as I slowly fade,
Wash of every haunted sin
Keep me dreaming outside the shade

My love

(inspired by this beautiful song:)


História pedida 9 (por A Ronda dos Dias - frase para início da história): Os Outros e mais Nós

AO CONTRÁRIO DE TODOS OS OUTROS, FORAM INFELIZES DE UM MODO COMPLETAMENTE BANAL.
É que nem um dramazinho, uma dificuldade digna de registo ou sequer um amor impossível em todos estes anos que já se tinham passado. Desde o sim, nada. Só aquela mornice dos dias que corriam - não, que escorriam -, devagarinho, devagarinho sem doer.

Logo eles que estavam avizinhados dos mais extraordinários acontecimentos e vidas complicadas, naquele bairrozinho antigo de Almada, encostado ao Castelo, as casas velhas espreitando o Tejo. Abundavam as histórias de fins shakesperianos, pescadores sem regresso, filhos desencontrados, amantes descompassados, doenças catastróficas e coisas assim.

Mas eles não, ali andavam naquela secura de dias. Numa rua em que todos tinham uma história mais tenebrosa que a do outro para contar, eles eram banalmente infelizes, assim uma coisinha sem sal, uma sensaboria, um dó de história. Os outros olhavam-nos com estranheza, pois então como podia ser, nestes anos todos, naquela rua esquecida, meia suja, meia salgada, onde tudo era pobre e em que tudo o que era ruim parecia acontecer. Mas àqueles dois não. Nada.

Certa altura ainda se ensaiaram na ficção das doenças, só para não passarem por mal educados, só para não terem nada a dizer, só para não parecer que se queriam mais e maiores que os outros. Mas mesmo isso foi um sem-fim de banalidades; as infalíveis dores de costas, artrites e artroses, azias e bicos de papagaio e, em desespero de causa, até uns joanetes.

Cedo se deixaram de modas, porque tudo isto era imediatamente suplantado com as respostas que versavam sobre os «enurismas», os níveis olímpicos do «castrole», as noites de febre em que não se dormia com as «convicções» e até os «abc’s» que pareciam acontecer porta sim, porta não.

Deixaram-se então ficar cada vez mais pendurados na janela sobre o Tejo, a ver os males dos outros a passearem.
Um fim de dia ele virou-se para ela « Será que afinal nós somos mas é felizes?»
«Pois, se calhar é isso». Pegou-lhe na mão com doçura e sorriu.

domingo, 11 de setembro de 2011

11/09/2001 - O dia em que o menino Jesus morreu

Crescemos a ouvir falar do nosso querido Menino Jesus.
Ensinam-nos a todas as noites rezar pela sua protecção, a adorá-lo e a beijar os seus pezinhos amarelados no fim da procissão.
Crescemos a ouvir dizer que o Menino Jesus protege todos os meninos do mundo e que protege os seus pais, avós e todos a quem se quer bem.
Crescemos a ouvir que se nos portarmos bem, se não fizermos judiarias, se formos bons uns para os outros, o Menino Jesus nos acalentará sempre no seu peito e nenhum mal nos vai chegar.

Crescemos a ver o Menino Jesus todo engalanado em dias de festa, com o seu ar melancolicamente doce e acreditamos que tudo o que nos disseram sobre a sua luz protectora, infinita e que não conhece fronteiras, só pode ser verdade. E sorrimos felizes, aquecidos por dentro porque sabemos q alguém olha por nos, sempre e sem descanso. Por todos nós em todo o lado. Por todos os meninos e por todos os que já cresceram.

Mas então pai, o que aconteceu hoje ao Menino Jesus, pai? Na televisão só vemos este terror todo lá na América, pai - até estou com frio pai, a sério que estou a tremer - tanta gente a morrer, tantos meninos a ficarem sem pai, sem mãe, sem alguém que lhes é querido, tanta gente a chorar, a doer, pai, ai que se vê o tanto que lhes dói.. Que se passa que não há ninguém a protegê-los, estão tão infinitamente sozinhos, pai, assustados pai, ninguém os ampara; mas que se passa pai? E viste aquela senhora cinzenta, cinzenta porque carregada de cinza, tão assustada pai, sem parar de gritar o nome do seu filho, que não sabia do seu Jesus, que não o encontrava no meio de toda aquela perdição, de todo o pavor, de todo o medo… 

Que aconteceu pai? Hoje o menino Jesus morreu?

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

História pedida 8 (por Anónimo: fotografia de pêssego): Fim de Verão

                                    
Ofereceu-lhe um pêssego.
«Um pêssego??» disse ela de sobrancelhas arregaladas.
«Sim, pega, um redondo, gordo, quente pêssego.» Tinha acabado de o apanhar. Ainda tinha as mãos a colar. Isto de apanhar um pêssego assim no meio do nada, sem experiência nenhuma na apanha da fruta nem em nenhuma outra apanha sequer, tinha muito que se lhe dissesse. Estava muito cheio de si mesmo. Um belo e opulento pêssego para entregar à sua «mais-que-tudo-que-é-tão-linda-e-que-eu-quero-tanto-e-para-sempre-e-sempre». Afinal já era um homem. Um homem capaz de chegar às árvores mais altas, sem a ajuda de ninguém, mesmo àquelas que parecem roçar o céu, tocar o sol e as estrelas.

«Sim, um pêssego para ti. Apanhei-o sozinho. Mas então não é a tua coisa preferida?»

Ela sorriu. Sim, era verdade. Pêssegos uns atrás dos outros mal chegava o calor. Lembravam sempre as tardes passadas entre os pessegueiros no moinho e onde o levara este Verão. Para sentados pararem o tempo enquanto devoravam pêssegos de todas as cores. E ela contava-lhe como crescera, as histórias que a tinham desenhado vírgula a vírgula, até ser esta que é hoje. E assim passaram horas e dias e semanas até já não haver sol e o vento amainar.

«Mas meu mais-que-tudo-que-és-tão-lindo-e-que-eu-quero-tanto-e-para-sempre-e-sempre, na praia não há pessegos, não há pessegueiros, não há árvores sequer. Não vês que isso é o bolo que acabámos de comprar à senhora do tabuleiro?»

Ah, então é isso, afinal não é um pêssego. É uma bola de berlim. (mas o sorriso da mãe é igual ao das tardes no moínho.Estou feliz à mesma.)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

História pedida 7 (por Anónimo: foto futebol): Missão Impossível

«Tu nunca choras». Ouvi estas palavras sairem assim de mim. Nunca te vi chorar. Afinal não era uma afirmação, é uma pergunta. «Porque nunca choras?». Nem agora que o teu pai morreu. Há uma semana que te esperava ver chorar e nada.

«Não sei. Não me lembro de chorar. Não me lembro da última vez, não é coisa que me faça falta».

Fiquei a pensar no que me dizias de olhar perdido na televisão. Fazer falta? Não, não é uma questão de fazer falta. É uma coisa assim de ser pessoa, de ser gente, de sentir. Então eu, que tenho sempre uma imensidão de lágrimas bem à flôr da pele.

«Ah, já sei. Chorei quando foi aquele golo do Rui Costa para a Liga. Foi mesmo lindo.»

Sai-me um ai bem suspirado. Nem uma amostra de vulnerabilidade, nem um vislumbre de precisares um bocadinho do meu colo ou de mim.

Já passámos por tanto, já me viste perdida no fundo de mim, já tivemos sustos e pontos finais. Nem naquele dia que saí para não mais voltar, em que te disse tudo, com a maldade mesmo a querer saltar para fora de mim, magoar-te, doer-te como tu me dóis a mim. Nem assim. Nem assim uma única lágrima tua. É verdade que não demorei mais que duas horas a voltar. E tu em frente à televisão como se nada tivesse sido.

Hoje cheguei a casa e encontrei-te de lágrimas nos olhos. A chorar! Sorri, feliz. Até que enfim um bocadinho de pessoa a sair de dentro de ti. Sentei-me ao teu lado preparada para finalmente te ter no meu colo, no meu abraço.

«Granda golo, caraças! Granda Benfica, pá!»

E é por isso que estou agora gelada a chorar.

                                                                  Pablo Aimar - Fotolog | http://www.fotolog.com/raquelguerreiro6/42078426

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Amor I Love You

Hoje dei por mim a pensar em ti.

Quer dizer, nao é que tenha sido só hoje, como tu bem sabes, porque eu há muito tempo que penso muito em ti, de muitas maneiras diferentes e em muitas horas não contadas dos dias que correm devagar.

Mas hoje dei por mim a pensar em ti de forma diferente, de forma mais pensada e calada.

Nao te assustes com a palavra «amo-te». Ela pode não ser assim tão séria, nem tão formal.

É que eu amo-te sabes, neste meu amor fácil e sem prendura, deste jeito impensando e consagrado em todas as tuas palavras no meu ouvido, em todos os teus gestos em mim. Amo-te assim sem esse peso que a todos deixa consternados e ensimesmados, como um pesadelo bem carregado a pairar e a acompanhar-nos todos os dias destas vidas.

É que o meu amor é assim facil, sabes, assim puro, sabes, uma coisa só assim de mim para ti, leve e desprendida como todo o amor devia ser. Eu amo-te nesta minha forma de te amar, com este amor que é só teu, com esta ligeireza que é só minha para ti. Por isso não te assustes com o que te escrevo ou digo, porque eu te quero assim só por querer, só por me quereres, sem laços a prenderem-nos, sem vontades de mais. Porque te quero amar só assim, deste jeito fácil e esquecido.

É que assim não custa, sabes, assim doem menos as ausencias e as solidões. Assim não se pensa nem sente tanto. Porque assim é só assim, à flor da pele e sem medos de mais.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

História pedida 6 (por Anónimo - frase de Fernando Pessoa): POST-IT

Olhei em volta e não te vi. Procurei em cada quarto, em cada sofá, em cada cama e não te vi. Não te vejo em parte nenhuma da nossa casa. E já não sei há quantas horas, dias, semanas que não te vejo. Que não me lembro de ti.

Hoje os miúdos perguntaram-me por onde andavas e foi por isso que te vim procurar. Porque não sei responder.

A última vez que me lembro de te ver foi naquele outro dia – há quanto tempo? uma semana, um mês? -, em que me irritei mais uma vez contigo, porque no meio da gritaria de todos os dias com estes quatros refilões que temos como filhos – que eu tenho como filhos, porque tu, tu mal os vês, não é? sempre o trabalho, as reuniões, o ginásio e até a tua mãe que não largas -  pois que no meio da gritaria matinal, dos cereais no chão, das dentadas do Lourenço à Maria e dos puxões de cabelo entre as gémeas, ainda conseguiste tu partir o meu copo. Aquele que trouxe de casa dos meus pais, aquele da minha viagem de finalistas a Lloret e que guarda bem a memória da rapariga que fui – era tão assustadoramente leve, eu, quero dizer, eu nessa altura – e tu partiste-o, cacos espalhados pelo chão, no meio de restos de comida, carrinhos e meias pequeninas, e tu a apanhá-los vagarosamente enquanto eu me desfazia em gritos e em nervos.

Depois estranhei que não tivesses dito nada. Nem gritos, nem a conversa do costume, que já não olho para ti, que já não te toco, já não me lembro do que era sermos nós, já não me conheces e o anda cá, descansa, pára cinco minutos no meu peito e eu digo Que disparate! não vês que os miúdos têm que ir para o banho, ou para a escola, ou dormir ou outra eventualidade qualquer.

Mas nesse dia não disseste nada. Viraste as costas. Espera, acho que antes de te ouvir fechar a porta da rua, ainda vieste à cozinha. Sim, acho que me lembro de te ver colar um papel no frigorífico no meio dos cinquenta e três recados que por lá colo para não me esquecer de tudo o que há a fazer na pequenez dos meus dias.

Olha afinal ainda cá está

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos."
Fernando Pessoa

Ah….

E o post-it caiu no chão.