Frase sugerida por Bartolomeu «Reflectem-se nas palmas das mãos, as linhas de um destino indistinto; por se cruzar indistintamente com outros..»
Ela chama-se Irina, nome estranho e pouco convidativo, nada afinado com o tom da voz com que nos enche as noites. Os cabelos loiros, pintados, as unhas encarnadas, esmaltadas, o rímel carregado e a saia travada, dizem pouco do que ela sempre foi e que quero acredidar que ainda é.
Procura homem há anos, mas não se deixa ir com qualquer um. A voz rouca e vivida fala-nos daquilo que Irina não nos quer contar. Senta-se no fundo do bar até chegar a sua vez de subir ao mísero palco e cantar. Ajeita a saia, passa a mão no longo cabelo. Acena com jeito para o guitarra e ali começa num soluçar que nos aperta o peito e se nos cola às mãos.
Irina canta com sentimento, com dor. Vê-la no meio do fumo é um dos raros prazeres com que me presenteio. Todas as quintas à noite, desço a calçada até este antro de tabaco e aguardente, em ânsias por ouvi-la cantar. Em ânsias por ouvi-la, não por vê-la. Quando ela lá sobe na penumbra, abre a voz e começa a cantar, fecho os olhos e oiço a Irina menina que um dia deixei no altar.
Fecho os olhos e ainda a oiço cantar-me para adormecer, o fado que escreveu para a mim «Refletem-se nas palmas das mãos, as linhas de um destino indistinto; por se cruzar indistintamente com outros...».
Hoje quando ela sobe ao palco olho as minhas palmas, enrugadas, calejadas, velhas e secas e tento lembrar-me porque me fui naquele dia, enquanto a sabia deslavada em lágrimas à minha espera, perdida para sempre da inocência e do amor. E só porque me deixei levar pelo medo, pelo medo de não ser homem para ela, nem para esta voz rouca e tão cheia que sempre pensei que a levasse até tão longe, que um dia deixaria de voltar.
Sobe agora ao palco. Já é pouco do que foi a minha Irina, ja nem saberia bem quem é, escondida que anda debaixo de tanta cor fingida. Mas aquela dor na alma e na voz fui eu quem a fiz, agora sou eu quem a vai levar cantando-a na minha voz noite e dia, cantando-a para castigar-me, com vontade de fazer o tempo voltar e ir buscá-la ao altar.
Antes de mais, cumpre-me agradecer-te a atenção que me dispensaste.
ResponderEliminarEm tempos, troquei correspondência com o escritor José Saramago. À primeira carta que lhe enviei, chegou um dia a resposta, que começava assim; «Prezado Senhor, Responder, quase sempre, responder a tempo, quase nunca.»
Esta Irina de voz rouca e dorida, abandonada um dia à porta de um destino sonhado, cumpriu-se cantando. Cobriu-se da fantasia que a transformou na Irina fadista, numa tentativa de disfarçar, de transformar as linhas indistintas de um destino traiçoeiro.
Um destino que ao cruzar-se com outros, se vai montando e desmontando a si próprio.
Gostei, Histórias, obrigado!
;)
Linda história. Voz e mãos, duas coisas que me dizem muito. Com os olhos, são os pontos que, reparo primeiro, numa pessoa.
ResponderEliminarA história é triste mas, pode ser a história de alguém.
Já se sente bem? Desejo que sim.
Abraço
Maria
Bom dia!
ResponderEliminarVejo que continua inspirada. Assim sendo, proponho-lhe estes dois versos de Mário de Cesariny, do poema "you are welcome to Elsinore":
"Entre nós e as palavras, os emparedados,
e entre nós e as palvras, o nosso dever falar".
Um abraço
Caro Bartolomeu! Muito e muito obrigada pelas palavras e pelo «desafio». E obrigada pelo bocadinho da tua história que partilhas neste comentário. Já sabe, se apetecer-te, venham mais!
ResponderEliminarQuerida Maria, tão sensíveis sempre as suas palavras! Já estou fina ;)
Cara Matéria dos Livros, adorei o seu desafio!! E quanta responsabilidade...Cesariny!! A ver se me inspiro à altura.. Obrigada!
Olá, Histórias de Nós
ResponderEliminarSó hoje pude vir aqui comentar a história com o mote dado pelo Bartolomeu...
Como sempre, uma história que faz sentido porque fundada no nosso lado mais humano e nas suas fragilidades. Gostei muito.
Beijos.
Olinda