Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Dó Maior

Ando aqui em semi-círculos. Meia volta para a direita, outra meia para a esquerda. Podia ser uma dança, coisa ritmada e boa, mas nem por isso. Ando a ver se me encontro. Acho que é isso, mas leve e pairante, sem nada das agruras que andaram comigo lá atrás.

Por acaso é verdade, tenho saudades de dançar. Também tenho saudades de cantar. De subir a um palco toda ligeirinha e aproveitar só o instante.
Também podia ser só cantar nas aulas com a Professora Cristina, toda ela espaçosa, em corpo e presença, a chamar-me os piores nomes quando teimava em esquecer-me do último Dó nas escalas - o que acontecia sempre..
Subia as escadas do prediozinho em Campo de Ourique com um nó no estômago: eram nervos e era responsabilidade. A Professora Cristina cantou com a Callas, foi nome primeiro da ópera nacional. (Até hoje acho que só pode ter-me aceite como aluna aqueles dois anos por alguma necessidade mais prática.)
A loura rapariga de grandes olhos azuis e voz cristalina que se cruzava comigo descendo as escadas cantarolando, era ser etéreo e carregado de um talento a que eu, ingenuamente, aspirava. Mais tarde consegui colar-lhe um nome quando a vi anunciada em palcos por aí fora (a quem interesse: era a Marta Hugon).
Eu chegava sempre atrasada, depois de voltas infinitas para estacionar, e naquela hora esvaziava-me de todas as notas, tons e sobre-tons acompanhada pelo piano firme da Professora Cristina. Descia de fugida para regressar ao trabalho -- ia sempre leve, feliz e catarolante. Não interessa se não serviu de nada, se rapidamente me resumi à minha insignificância vocal. Conheci Cristina de Castro, a sua sala encafuada de livros, vinis, bibelots, almofadas e sei lá que mais e fui muito feliz em Campo de Ourique, mesmo que numa corrida, mesmo que perdida entre o riso e a nervoseira por cada palavrão que me era destinado - e merecido, pois claro - por aquela senhora incrível com as histórias mais geniais.
O palco agora é a pedido das minhas crianças. Ainda consigo chegar ao Dó mais agudo, tímpanos a vibrar e ar quase a faltar, mas faltam-me as minhas horas de almoço num pulinho a casa da Professora, onde o mundo ficava em suspenso por 60 minutos enquanto aprendia a ser simplesmente afinada e feliz.

(Descobri agora que a Professora Cristina morreu dois anos depois da minha última aula. Uma memória dela aqui: https://www.youtube.com/watch?v=UV3DIb9PUKw )


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