Era uma tarde de Outono, daquelas em que, por vezes, a nostalgia se apodera de nós. Não de mim, que gosto da estação, do sol baixo e do céu rosa que lhe são tão comuns.
Agarrada ao volante, nem eu própria sabia porque me dirigia ao Guincho.
Agarrada ao volante, nem eu própria sabia porque me dirigia ao Guincho.
O volante tremia nas minhas mãos e o cabelo voava em todas as direcções despenteando o que ainda agora a Benilde, do pomposo Benilde’s Hair, esteve a acertar.
Felizmente hoje não era dia de vendaval no Guincho, daqueles em que se confunde a estrada com as dunas, de tanta areia pelo ar, e em que até os caniches levantam voo. Como dizia o meu filho mais velho. O irmão colava o nariz ao vidro à espera de ver tal insólito. E o mais velho a rir-se.
Não sei porque me lembrei disto agora, nem porque vim aqui parar. ´
Mas hoje está a ser um dia estranho, um dia fora de mim. Acordei assim à procura de uma mão que me agarrasse ao acordar. Como faziam os pequenos quando acordavam de manhã e diziam que me iam visitar. E eu a encenar que dormia, de mão fingida à espera de nada, feliz por encontrá-los novamente ali todas as manhãs. Rituais. Acho que é isso que me fez falta esta manhã. Os nossos rituais.
Eles agora têm os deles, um com os filhos, outro com a sua vida. Perdemos os nossos, ganharam os deles. Há dias assim em que me fazem falta, em que esta liberdade toda que agora tenho nas minhas mãos sabe a vazio e a falta de. A falta de coisas que agora não sei nomear. Apenas falta de.
É certo que ganhei tempo e espaço para o que sou e para tornar-me cada vez mais eu. Mas também para encher-me de medos e sustos. Por eles. Os meus meninos-grandes a quem tanto quero.
Paro no bar do Guincho para um sumo. Sim, lembro-me, tínhamos este ritual no primeiro dia de Outono. A despedida da praia. Sempre aqui no Guincho, com chuva ou sol. Eles felizes porque já adivinhavam as castanhas a saltarem na nossa lareira e a aproximação do Natal.
Perdemo-nos na adolescência deles, nas vidas atribuladas, nas vontades de mais que sempre os encheram e que ainda hoje não lhes dão descanso. Aos meus meninos-grandes. Devia ter aproveitado para trazer o meu caderno de escrever. Pelo menos fazia-me companhia.
Hoje estou mesmo fora de mim. Hoje faz-me falta alguém ao meu lado. Hoje que é o primeiro dia de Outono, encontrei-me aqui à procura do nosso ritual esquecido.
O telefone toca. A Rita diz-me que já está no estúdio à minha espera para começarmos a gravar o primeiro do nosso novo programa. Todas as terças. Ainda me meto nestas aventuras. Tenho tempo para isso. Tenho espaço. Tenho vontade de um novo ritual. E já sei qual vai ser o meu tema de abertura de hoje. Vou falar do caniche que acabei de ver a voar no Guincho.
Cara Helena, aqui está a resposta ao seu desafio. Como poderá ver, inspirou-me duplamente..não foi só o seu começo que me serviu de inspiração!
ResponderEliminarEspero que goste. Sinto uma responsabilidade (muito) acrescida por ser um «pedido» seu. Cada vez mais a admiro em vários sentidos e por múltiplas razões.
E muito obrigada por se ter tornado visita constante.
Se lhe apetecer, venham mais desafios!
Obrigada
M.
Que maravilha de história! O tema é aliciante e, sugestivo. Quem não tem rituais? Habituamos-nos a eles e, quando desaparecem, sentimos a falta deles. Inventamos outros, habituamos-nos, voltamos a perdê-los. São ciclos, pedaços de vida, coisas que não esquecemos nunca.
ResponderEliminarJá tive os rituais de filha, mulher, mãe, avó. Alguns ainda os recupero de vez em quando. Outros...
Lembro-me de todas as noites, antes de me deitar, ir ao quarto dos filhos, beijá-los, acariciar as cabecinhas, aconchegar a roupa. Onde isso vai!...
Agora, o ritual é outro. Depois de dar uma voltinha pelos blogues amigos, como se estivesse a dizer: "Até amanhã", vou para o quarto, desejo uma boa noite aos filhos e netos, olho as fotos dos meus pais que já partiram, numa saudade muda, faço uma festa ao velho canito, beijo o meu marido e, digo, mesmo que já durma, dorme bem, meu amor. Este último ritual dura há 45 anos, o tempo deste amor. Espero, guarda-lo, muitos anos.
Boa noite, minha nova amiga. Hoje, foi a primeira a quem o desejei.
Maria
Cara M.
ResponderEliminarBela história no tom, no ritmo, na palavra.
Há muito tempo, costumava ler em primeira mão uma história de um escritor de quem muito gosto e hoje é muito conhecido.
Depois, eu pegava nela e dava-lhe seguimento. E ele retornava. Até que um de nós terminava. E aquele que a acabara, recomeçava com outra.
O que morrer por último há-de, um dia, publica-las...
Obrigada pelo prazer que me deu!
Oh, menina, que engraçada e terna que ficou esta sua pequena história. É uma leitura que prende, a sua. E consegue dar sempre um ar de sua graça. Dá vontade de lhe ir aqui deixando novos pedidos para ver a volta que lhes dá... mas hoje vou-me conter.
ResponderEliminarCara Helena,
ResponderEliminarMuito obrigada pelas suas gentis palavras.
O meu sonho é um dia poder viver da escrita - prosa, poesia, músicas, o que for. O espartilho dos horários do trabalho numa empresa muitas vezes sufoca-me. Fico sem tempo para o meu mundo, a minha escrita e, acima de tudo, custa-me ficar com o tempo contado para acompanhar o crescimento dos meus dois filhos (dois rapazes também) que são ainda tão pequeninos.
Infelizmente não tenho a sorte de ter algum amigo escritor. Tenho muito bons amigos no mundo das artes - pintura, artes plásticas, música - mas ninguém com este amor e necessidade da palavra escrita.
Por isso sorri com um «quem me dera...» ao ler da sua história com o seu amigo escritor. Deve ser muito bom ter esse tipo de relação, cumplicidade e paixão partilhada.
Apetece-me muito dizer que gostaria de ler essas histórias encadeadas, mas sem ter que haver a morte de um...Terá mesmo que ser assim?
Mais uma vez obrigada pela honra e sempre que lhe apeteça, deixe mais um «desafio». Não imagina o prazer que me dá inventar histórias.
Obrigada
M.
Cara Maria
ResponderEliminargostei tanto do seu comentário e de ter partilhado comigo um bocadinho da sua história!
Que ternura esse seu ritual. Muito obrigada por incluir-me também, por hoje.
O seu marido só pode ser um homem de sorte, com esta declaração...45 anos! Coisa rara hoje em dia. Parabéns!
Olá, História de nós
ResponderEliminarConto excelente! A vida é feita de rituais e há alguns que já fazem parte de nós, como o vir aqui...
Cada dia que passa 'isto' está a tornar-se mais emocionante.
Voltarei.
Bj
Olinda