A príncípio olhava-o com desconfiança e dava mais três voltas se preciso fosse, só para não ter que parar o carro nos seus domínios. Incomodava-me o «conceito», incomodava-me a persistência do «ó vizinha não quer um lugarzinho?», incomodava-me o ar escanzelado, a barba por fazer, a roupa de côr indefinida, o olhar sombrio. O cheiro a tinto. E este incómodo tem um só nome: preconceito.
Em desespero de causa, por algumas vezes lá cedi a ficar no «lugarzinho» e atirar uma moeda com medo de tocar-lhe. Sim, porque isto vá lá saber-se que doenças, que bichezas e que caminhos já andaram por aquelas mãos.
Mas então, e não me perguntem porquê porque não faço a mais ínfima das ideias, lá comecei a dar por mim todos os dias a recorrer aos prestáveis, incansáveis e indispensáveis serviços do Xico, que é afinal quem manda na rua do hospital. Todos lhe falam, todos o cumprimentam. Há inclusivamente quem lhe deixe as chaves do carro o dia inteiro e ele lá vai fazendo perfeitos malabarismos circenses, em ruas impossíveis e com a polícia à espreita.
Ultimamente saía-se sempre com esta: «Ó Dótora, pode deixar aqui sossegadinha que Eles hoje não vêm cá, garanto-lhe.» Páro para pensar quem serão os Eles a que se refere com tanta solenidade e lembro-me dos senhores da Emel que de há uns meses para cá se entretêm a multar todo e qualquer menos avisado prevaricador. E respondo-lhe «Tem a certeza? Não me apetece nada mais uma multa..» «Ó Dótora, no dia em que não acreditar na minha palavra, deixa de olhar-me na cara». Sorrio, sem saber bem como reagir a tal sentença. E confio.
No outro dia chovia um perfeito dilúvio. O Xico lá me arranjou lugar. Baixei a janela, dei-lhe a prestação do dia e ele lá se foi sorridente debaixo do chapéu de chuva. E eu ali enfiada no carro, vidros embaciados, à espera que a chuva amainasse porque não há um chapéu que resista nas minhas mãos - sou o perfeito triângulo das bermudas das sombrinhas. Como já estava atrasada, decidi aventurar-me, encolhida em mim mesma, colada às paredes. E lá aparece o Xico, todo solícito: «O Dótora, mas então porque é que não me pediu boleia? Eu estava ali a a pensar, Mas então a criatura não sai do carro?, palavra de honra que estava - ai, desculpe, a Dótora criatura - mas para quê isso Dótora, então a gente não estamos aqui uns para os outros? Ora essa».
E eu sorrio, contente porque ainda há cavalheiros.
Os porteiros do hospital olham irónicos para nós e comentam «Este sabe-a toda». E sabe mesmo.
Até dá pena vê-lo desperdiçado em tão mísero míster. Um dia demorei-me com ele. A minha mão lavada de preconceitos, apertou a sua. «Xico, porque andas nesta vida? O que se passa? Deixa-me ajudar-te». O sorriso dele fechou-se. «Ó Dótora deixe-se disso, não se atrase mas é» Eu insistindo, «Xico, pode ser que te consiga ajudar, conta-me a tua história». «A minha história é só minha» atirou-me de olhar cerrado, enquanto me voltava as costas.
Nos dias seguintes deixei de o ver. Já voltou há mais de um mês. Nunca mais me arranjou lugar e ainda ontem cheguei toda encharcada ao 5ºandar.
Há uma certa dignidade na atitude do Xico. E pudor, também. Quantas vezes, pensando que estamos a ajudar, afastamos de nós, os Xicos deste mundo!
ResponderEliminarJá me deparei com alguns, amiga.
Um dia conto.
Boa história.
Beijo
Maria
Olá, História de Nós
ResponderEliminarUma história sublime, que fala de preconceitos e também de dignidade e de um certo orgulho.História de tantos que andam por aí, cada um com a sua história, que muitos guardam ciosamente.
Beijo e bom fim-de-semana.
Olinda
Queridas Maria e Olinda, ainda bem que gostaram! Esta é uma história que tem muito pouco de história... é quase um testemunho meu em discurso directo, só mudei o nome do meu Xico..
ResponderEliminarBJS as 2!
Olá, Histórias de Nós,
ResponderEliminarCheguei aqui pela "mão" da"UJM".
Comecei a "espreitar" desde o início do blog. E gosto, gosto muito do que tenho lido.
Chegada a este post, parei um pouco mais. Li-o, atentamente.
Sabe? Tenho um imenso respeito por todos estes "Xicos" que a maioria de nós conhece.
Olho-os e interrogo-me. Que vida terão? Que vida teriam tido? O que lhes fez? Melhor, o que fez deles?
E respeito-os. E falo-lhes, e sorrio.
E eles sorriem, como que numa cumplicidade.
Se me permite, vou ficar por aqui, por este seu espaço.
Abraço