O friso dourado da cadeira condizia com o friso dourado do balcão, que por sua vez levava até ao friso dourado da ombreira da porta, que levava então ao dourado do letreiro onde se podia ler, alto e bom som, «Chez Flô».
Todas as últimas quintas-feiras do mês reuniam-se ali a contar das semanas que passaram. O grupo das professoras reformadas animava a sala tantas vezes vazia. O restaurante da Floripes – perdão, da Flô, como insistia que lhe chamassem – estava cada vez mais vazio e nem os seus afamados profiteroles garantiam a clientela de outros tempos.
As quatro professoras agora já grisalhas, gastavam ali sempre umas boas duas horas a esquecerem o tempo que passara e a encher o Chez Flô de gargalhadas roucas e sinceras – excepto a da Professora Isabel, que tinha uma gargalhada asmática que se ouvia num silvo, enquanto se tornava roxa de tão branca que sempre fora. Floripes deliciava-se a ouvir os detalhes que ritualigiosamente enchiam a conversa cronometrada. Porque todas continuavam com muito que fazer, sem tempo para nada, ou pelo menos assim o anunciavam. A Professora Ilda, alentejana de gema, de sotaque cerradíssismo apesar da vida inteira que vivera ali em Setúbal, trazia sempre um novo episódio. Até a Professora Ana Luísa, de ar seco e sisudo com o seu cabelo curto e másculas camisas de flanela, se agarrava ao braço da roliça Professora Luzia, já não aguentando de tanto rir.
A Professora Ilda hoje chegava de ar esbaforido, acabada de chegar de Beja: Querem lá saber migas, vim direitinha do mê médico lá em Bêja para vir ter com vocemessês e nã é que venho muito mais aliviada? Falei-lhe daqueles aflições que se me dão, aquele sobressalto que me dá de baixo para cima e que parece que me vai sair pela cabeça fora e atão nã é que ele me disse que isto nã é nada, que é mas é um pêdo que nã sabe se há-de sair por baixo, se por cima..? Já viram que até os pêdos têm destas indecisões...?» E o Chez Flô num fartote de rir.
Floripes sorria atrás do balcão. Gostava daquela irmandade. Faltava-lhe uma cumplicidade assim, alguém a quem contar de si. Um dia haveria de contar-lhes da sua história. De quando, na verdura dos vinte, foi ao encontro da querida prima Margot em Paris, irmã de sonhos e promessas. Contar de como se perdeu de amor pelo Philippe, pintor imberbe, que durante aquele Verão ganhava os francos para o café a pintá-la desnuda e desprendida nas promessas de uma vida a dois nas margens do Sena. Vida essa que se despencou no dia em que la douce Flô, como Philippe a havia re-baptizado, o descobriu a vender quadros que mostravam uma nudez que não a sua. Arrumou as malas e rumou a Setúbal. Só chegando escreveu uma longa carta desbotada para a sua soeur Margot a explicar que afinal a sua vida seria à beira do Sado.
No rádio que enchia o restaurante de música francesa dos anos 60 e 70, passava agora a música «La bohéme». Sorriu um sorriso triste enquanto se decidiu a acabar com o ultimo profiterole. Afinal a vergonha já a perdera há muito. Precisamente na primeira vez em que se despiu para um desconhecido na noite dourada de Paris.
Obrigada amiga. Por mim e por Margot.
ResponderEliminarFez uma história linda. Tudo cheira a passado, a sonhos não vividos, ao som de Aznavour. Os profiteroles, agora outra vez na moda, as quatro professoras reformadas, a Flô que viu o seu sonho
desfeito. A facilidade que tem, de fazer de pouco, uma bela história!
Adorei toda a trama mas, o fim é formidável.
Obrigada, amiga.
Um beijo
Maria