Olhei em volta e não te vi. Procurei em cada quarto, em cada sofá, em cada cama e não te vi. Não te vejo em parte nenhuma da nossa casa. E já não sei há quantas horas, dias, semanas que não te vejo. Que não me lembro de ti.
Hoje os miúdos perguntaram-me por onde andavas e foi por isso que te vim procurar. Porque não sei responder.
A última vez que me lembro de te ver foi naquele outro dia – há quanto tempo? uma semana, um mês? -, em que me irritei mais uma vez contigo, porque no meio da gritaria de todos os dias com estes quatros refilões que temos como filhos – que eu tenho como filhos, porque tu, tu mal os vês, não é? sempre o trabalho, as reuniões, o ginásio e até a tua mãe que não largas - pois que no meio da gritaria matinal, dos cereais no chão, das dentadas do Lourenço à Maria e dos puxões de cabelo entre as gémeas, ainda conseguiste tu partir o meu copo. Aquele que trouxe de casa dos meus pais, aquele da minha viagem de finalistas a Lloret e que guarda bem a memória da rapariga que fui – era tão assustadoramente leve, eu, quero dizer, eu nessa altura – e tu partiste-o, cacos espalhados pelo chão, no meio de restos de comida, carrinhos e meias pequeninas, e tu a apanhá-los vagarosamente enquanto eu me desfazia em gritos e em nervos.
Depois estranhei que não tivesses dito nada. Nem gritos, nem a conversa do costume, que já não olho para ti, que já não te toco, já não me lembro do que era sermos nós, já não me conheces e o anda cá, descansa, pára cinco minutos no meu peito e eu digo Que disparate! não vês que os miúdos têm que ir para o banho, ou para a escola, ou dormir ou outra eventualidade qualquer.
Depois estranhei que não tivesses dito nada. Nem gritos, nem a conversa do costume, que já não olho para ti, que já não te toco, já não me lembro do que era sermos nós, já não me conheces e o anda cá, descansa, pára cinco minutos no meu peito e eu digo Que disparate! não vês que os miúdos têm que ir para o banho, ou para a escola, ou dormir ou outra eventualidade qualquer.
Mas nesse dia não disseste nada. Viraste as costas. Espera, acho que antes de te ouvir fechar a porta da rua, ainda vieste à cozinha. Sim, acho que me lembro de te ver colar um papel no frigorífico no meio dos cinquenta e três recados que por lá colo para não me esquecer de tudo o que há a fazer na pequenez dos meus dias.
Olha afinal ainda cá está
"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos."
Fernando Pessoa
Ah….
E o post-it caiu no chão.
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