Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

sábado, 29 de outubro de 2011

Arrumador-a-Dias

A príncípio olhava-o com desconfiança e dava mais três voltas se preciso fosse, só para não ter que parar o carro nos seus domínios. Incomodava-me o «conceito», incomodava-me a persistência do «ó vizinha não quer um lugarzinho?», incomodava-me o ar escanzelado, a barba por fazer, a roupa de côr indefinida, o olhar sombrio. O cheiro a tinto. E este incómodo tem um só nome: preconceito.

Em desespero de causa, por algumas vezes lá cedi a ficar no «lugarzinho» e atirar uma moeda com medo de tocar-lhe. Sim, porque isto vá lá saber-se que doenças, que bichezas e que caminhos já andaram por aquelas mãos.

Mas então, e não me perguntem porquê porque não faço a mais ínfima das ideias, lá comecei a dar por mim todos os dias a recorrer aos prestáveis, incansáveis e indispensáveis serviços do Xico, que é afinal quem manda na rua do hospital. Todos lhe falam, todos o cumprimentam. Há inclusivamente quem lhe deixe as chaves do carro o dia inteiro e ele lá vai fazendo perfeitos malabarismos circenses, em ruas impossíveis e com a polícia à espreita.

Ultimamente saía-se sempre com esta: «Ó Dótora, pode deixar aqui sossegadinha que Eles hoje não vêm cá, garanto-lhe.» Páro para pensar quem serão os Eles a que se refere com tanta solenidade e lembro-me dos senhores da Emel que de há uns meses para cá se entretêm a multar todo e qualquer menos avisado prevaricador. E respondo-lhe «Tem a certeza? Não me apetece nada mais uma multa..» «Ó Dótora, no dia em que não acreditar na minha palavra, deixa de olhar-me na cara». Sorrio, sem saber bem como reagir a tal sentença. E confio.

No outro dia chovia um perfeito dilúvio. O Xico lá me arranjou lugar. Baixei a janela, dei-lhe a prestação do dia e ele lá se foi sorridente debaixo do chapéu de chuva. E eu ali enfiada no carro, vidros embaciados, à espera que a chuva amainasse porque não há um chapéu que resista nas minhas mãos - sou o perfeito triângulo das bermudas das sombrinhas. Como já estava atrasada, decidi aventurar-me, encolhida em mim mesma, colada às paredes. E lá aparece o Xico, todo solícito: «O Dótora, mas então porque é que não me pediu boleia? Eu estava ali a a pensar, Mas então a criatura não sai do carro?, palavra de honra que estava - ai, desculpe, a Dótora criatura  - mas para quê isso Dótora, então a gente não estamos aqui uns para os outros? Ora essa».

E eu sorrio, contente porque ainda há cavalheiros.
Os porteiros do hospital olham irónicos para nós e comentam «Este sabe-a toda». E sabe mesmo.

Até dá pena vê-lo desperdiçado em tão mísero míster. Um dia demorei-me com ele. A minha mão lavada de preconceitos, apertou a sua. «Xico, porque andas nesta vida? O que se passa? Deixa-me ajudar-te». O sorriso dele fechou-se. «Ó Dótora deixe-se disso, não se atrase mas é» Eu insistindo, «Xico, pode ser que te consiga ajudar, conta-me a tua história». «A minha história é só minha» atirou-me de olhar cerrado, enquanto me voltava as costas.

Nos dias seguintes deixei de o ver. Já voltou há mais de um mês. Nunca mais me arranjou lugar e ainda ontem cheguei toda encharcada ao 5ºandar. 

4 comentários:

  1. Há uma certa dignidade na atitude do Xico. E pudor, também. Quantas vezes, pensando que estamos a ajudar, afastamos de nós, os Xicos deste mundo!
    Já me deparei com alguns, amiga.
    Um dia conto.
    Boa história.
    Beijo
    Maria

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  2. Olá, História de Nós

    Uma história sublime, que fala de preconceitos e também de dignidade e de um certo orgulho.História de tantos que andam por aí, cada um com a sua história, que muitos guardam ciosamente.

    Beijo e bom fim-de-semana.

    Olinda

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  3. Queridas Maria e Olinda, ainda bem que gostaram! Esta é uma história que tem muito pouco de história... é quase um testemunho meu em discurso directo, só mudei o nome do meu Xico..
    BJS as 2!

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  4. Olá, Histórias de Nós,

    Cheguei aqui pela "mão" da"UJM".
    Comecei a "espreitar" desde o início do blog. E gosto, gosto muito do que tenho lido.

    Chegada a este post, parei um pouco mais. Li-o, atentamente.
    Sabe? Tenho um imenso respeito por todos estes "Xicos" que a maioria de nós conhece.
    Olho-os e interrogo-me. Que vida terão? Que vida teriam tido? O que lhes fez? Melhor, o que fez deles?
    E respeito-os. E falo-lhes, e sorrio.
    E eles sorriem, como que numa cumplicidade.

    Se me permite, vou ficar por aqui, por este seu espaço.

    Abraço

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