Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Carmim

Laurindinha morava na Rua das Flores, nº8, 5º direito e gostava bem de dizer a todos o nome da sua rua, o numero do prédio e da porta, numa cantilena seguida e que não calava. Rua das Flores, nº8, 5º dto, 2800 Almada, terra esta para onde os pais a trouxeram, vinda da aldeia que já nem lembrava, de seu nome Cunheira de Cima, sendo que nunca chegou a descobrir onde ficava a De Baixo.

A Laurindinha amarrava os cabelos castanhos e esguios com a fita dourada que a amiga Belinha lhe dera no dia em que a tinha deixado lá na aldeia, na sua casa cor de nada, cor de ontem, cor de alguma coisa que não sabia bem o que era, mas que todos juravam que um dia fora carmim. A primeira casa carmim da aldeia, que na altura a todos deixara de boca aberta, mas que com as chuvas de Dezembro e os suplícios de Agosto foi desmaiando folha a folha, até hoje ser desta cor que já ninguém sabe o que é.

Lá na aldeia todas eram Belinhas, Laurindinhas, Teresinhas e Clarinhas porque assim que nasciam lhes tinham que chamar qualquer coisa pequenina para distingui-las das mães e avós que tinham o nome igual. Mas no fim das contas, hoje em dia já ninguem sabia se se falava da Belinha mãe ou da Belinha filha. Da avó não seria, essa avó que pintou a casa daquele vermelho escuro, carmim como gostava de arredondar a boca a dizer sílaba a siliba, porque essa avó foi a única que não conseguiu um nome pequenininhoinho porque o seu já era indecifrável tal como era. A Avó Anette tinha chegado de França num dia de sol e calor que fazia transpirar até as paredes, envolta em plumas lilazes e tules esvoaçantes. Os perfeitos caracóis encarnados, envoltos numa fita de cetim dourada que escorregava pela nuca.

Todos os 53 e meio (tinha acabado de nascer o Janico da Sãozinha) habitantes desta aldeia perdida no meio do nada, de distancia igual para o Crato e o Sôr, se quedaram pasmados a ver aquela azáfama da chegada da franciú no bentley do sr. visconde. A jovem Anette, desceu firme e segura ajudada pelo sr.Antonio, motorista enfarpelado do sr.visconde e sorriu para a populaça.

Os dias passaram e mal se via a francesa pôr pé fora da casinha ajeitada entre a mercearia da D. Belarmina e o casa do padre Zé. Só a Ceição, alentejanita trigueira contratada pelo sr. Visconde para todo o serviço na casa da Madame, só a ela se via passar, dentro e fora, fora e dentro, numa azáfama sem fim de idas à mercearia, ao café, à igreja e sabe-se lá mais onde.

Até ao dia em que o sr. Visconde apareceu pela noite, só a D.Belarmina deu por ele e a Cunheira encheu-se de musica e risos estridentes. Essa noite repetiu-se semana sim, semana não, até que foi ficando mais espaçada e às tantas meses se passaram sem o Sr. Visconde dar as caras. Os suspiros da Madame começaram a ouvir-se pela aldeia inteira, noite e dia, dia e noite e ninguém nem nada a sossegava, nem os cafés da Ceição, nem os bolos da D. Laurinda, nem as mezinhas da D. Belarmina.

Só o padre Zé trouxe remédio santo, que afinal foi ele próprio e mais nenhum. Atreveu-se a entrar na casa da Madame, mesmo sabendo que não devia, que era casa do pecado, que a Sra Viscondessa quando soubesse não perdoaria e depois lá se iam a mesadas para a Igreja e as ajudas às festas de S.Francisco. Mas o padre Zé já há muito que espreitava Anette pelo canto do olho e via mais nela do que qualquer outro. Desde o dia em que a viu de combinação transparente a pintar a casa de vermelho escuro, carmim dizia ela anos depois, cheia de tinta nos braços nus brancos, nos cabelos enleados na fita dourada, nas lágrimas que lhe corriam nos olhos verdes claros.

Nesse dia ficou a vê-la a acabar o seu trabalho, a sua obra e quando já não restava mais nada para pintar, nem um recanto ou soleira, pegou-lhe na mão e deixou-a afogar-se no seu peito virgem de afecto.

A partir daí o padre Zé estava mais em casa da Madame do que na sua e não tardou em que aparecessem com a Belinha nos braços, a petite Isabelle como lhe chamava a mãe carinhosamente e a vida assim foi correndo enquanto o carmim da casa desaparecia com a calma dos dias que passavam.

A Belinha pediu à avó Anette a fita dourada com que sempre encarrapitava os seus cabelos. Era o que de mais precioso conhecia para dar à sua amiga que partia agora para essa terra desconhecida que diziam ser em cima do mar e que tinha medo que fizesse desaparecer  Laurindinha para sempre.

Essa fita tantas historias podia contar de Paris, da noite no Moulin Rouge em que o Sr Visconde levou a jovem Anette para a mesa, lhe contou da vida boa nesse pais que a menina nunca tinha ouvido falar, dos palácios, cavalos e festas, da viagem solitária por França e Espanha até chegar a essa casa cor de nada que é hoje mais uma entre as outras, mas que tanto teve para contar.

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