Era uma vez, duas ou três, alguém que um dia encontrou outro alguém. Encontraram-se, falaram-se, tocaram-se, beijaram-se, juntaram-se, amaram-se e morreram-se. Morreram-se? Sim, morreram-se. Deixamos de ser quem somos, não é?
Ora bem, então este alguém que até pode ser uma Maria como tantas outras Marias, via-se e revia-se na calçada pela tarde, cheia de brios e cores garridas, depois de largar o trabalho na mercearia da esquina. Mas quem a via com atenção, reparava em muito mais. O olhar saltitante, a mão no cabelo, o nariz no ar. A esta Maria como tantas outras Marias, não lhe chegava o seu amor lá em casa, sentado no sofa, com a mini na mão, os pés nos chinelos esfiapados e o palavrão no canto da boca.
Esta Maria, como tantas as outras aliás, crescera a ouvir as histórias dos principes encantados, das noites de paixão sem fim, das vontades de luares intermináveis e das palavras quentes ao por do sol. E portanto lá vai ela, uma e outra e todas as vezes, de nariz no ar e madeixa preta nos olhos, sorriso aberto e cantarolar perdido.
Passa em frente ao escritório do Doutor, desta como doutras vezes, suspira ao ve-lo novamente na ombreira da porta azul, mão no bolso e quentura no olhar, assobio rapido e palavra sussurrada quando a vê passar.
«Anda Maria..» e um arrepio sobe-se-lhe pela espinha acima e pelas pernas abaixo, treme-lhe a voz desta como das outras vezes, prende-se-lhe a desenvoltura do olhar e dá por si mais uma vez a corar «Oh Doutor....». E tropeça no passo do salto ja gasto, pensa que corre para não olhar, para não querer, para não deixar, enquanto os pés se lhe prendem debaixo do suspiro do Doutor.
Desta como das outras vezes, grita dentro de si, corre Maria corre mulher, corre que ainda o coração te fica aqui, corre que ainda vais para ele, corre que ainda te perdes de vez naquele olhar, corre que a vontade ainda te leva a melhor, que ele ainda te apanha mulher, que ainda te prende, que ainda te leva para cima, que ainda faz de ti quem nunca foste, que ainda te enche com essas coisas que só há nos livros, que ainda te faz acreditar que afinal há mais, que a vida não é morrermo-nos sentadas ao lado de algum alguém, que tu Maria mulher podes virar princesa mulher e depois quem é que te leva de volta ao sofá encardido, aos desportivos espalhados pelo chão, ao palavrão fácil quando chegas assim esbaforida a casa, de peito acelerado e mãos a gemer...?
Corre Maria, corre que essa vida não é para ti, as princesas só as há nos livros e o por-do-sol, esse nunca aqueceu ninguem.
Sem comentários:
Enviar um comentário