Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

terça-feira, 30 de agosto de 2011

A última árvore

Vim aqui sentar-me sozinha à beira da piscina, a apanhar os últimos raios de sol do dia, a aproveitar agora que o Luis saiu, agora que ele foi ao Cercal tratar de qualquer coisa. Isto porque não quero que ele desconfie ao ver-me sentada aqui sozinha, a escrever, enquanto a minha família dorme a sesta e ele lá do alto, no escuro da sua casa de porta sempre aberta, me espia e percebe logo que escrevo sobre ele.

Por isso agora que não está, posso escrever a história que inventei para ele, que vou inventando, ao mesmo tempo que fujo de grandes conversas, de grandes intimidades, porque prefiro ser eu a inventar a história deste homem encardido pelo sol, o pó e a vida, e não correr o risco de descobrir-lhe qualquer banalidade na história daquelas mãos grandes, de dedos fortes e escuros.

Assim, invento a história do Luis, eu que até há bem poucas horas o tratava por Sr. Luis, mas depois ele fez-me aquele piscar de olho e meio sorriso quando chegaram aqui mais uns bifes a este turismo rural que ele criou no monte dos avós e foi aí que me fez perder o Sr. para sempre.

O Luis aqui anda, sozinho com o seu cão a que chama simplesmente Cão (na realidade não, mas eu não percebi ainda o nome do bicho e acho que fica bem ao meu Luis um cão chamado Cão), esse canzarrão que se encosta a nós a pedir mais festas, que se bamboleia a andar qual baiana no Carnaval, mas que «já não dura muito», como disse o Luis a sorrir um sorriso triste, porque o ano passado teve uma trombose com o calor alentejano e já tem bem mais de 10 anos.

Este cão Cão não pertence aqui, não é personagem que encaixe bem na história verdadeira do Luis, porque é um Bobtail, cinza e branco (mais cinza que branco, tal é o pó acumulado), não o tipo de guarda alentejano que esperamos encontrar num monte perdido no meio do nada, mas a 10 minutos da àgua salgada do mar.

Mas então o Luis da minha história é igual ao Luis que nos traz o sumo acabado de fazer para o pequeno-almoço, que me empresta o portátil para passear na Internet e me tratou sempre por Exma Sra nos emails que trocámos ao marcar a minha estadia.

É um homem alto, mas não muito alto, nem magro nem gordo, de cabelo grisalho num perfeito desalinho desde a manhã à noite, de camisolas de cores indefinidas e calças de ganga cinzentas de tantos anos sem lavar. É escuro, castanho, bronzeado, empoeirado, de sobrancelhas cerradas e sorriso aberto. De sorriso muito aberto e transparente. Quando sorri os olhos escuros sorriem também e conseguimos ver-lhe até ao fundo da alma. Bom, genuinamente bom.

O Luis é desde o princípio o meu tipo de gente. O tipo de gente que gosto de ter à minha volta e que me faz sorrir ao lembrar. Tipo de gente e não tipo de homem, atenção. Além de provavelmente ter idade para ser meu pai (a idade dos dois Luises, o real e o da história é perfeitamente indecifrável), não tem ponta de charme. Não sei explicar melhor que isto. É tão profundamente bom, que seria totalmente impossivel apaixonar-me por ele.

O Luis leva o dia inteiro abaixo e acima com o cão Cão e eu noto-lhe um sorriso quando passa diante daquela árvore ali ao fundo, fundada no caminho para a piscina, que nem é grande nem pequena, mas está coberta de folhas imensamente verdes, ao contrário das vizinhas que estão amarelas e secas como todas as outras neste Verão no Alentejo.

Profundamente só. É assim que o vejo quando espreito da minha-sua janela. Sai com o cão Cão para tratar de mais um cano partido, uma luz que não acende ou algum viajante que se aborrece de fazer este caminho de terra batida e areia laranja que nos traz ao silêncio do Monte de Cima.

A irmã trata dos quartos durante a manhã, camas, limpezas, lavagens e afins, intervalando cada apartamento com dois cigarros e uma boa dose de tosse agoirenta, enquanto mal-diz o raio das moscas.

O Luis perdeu-se de amores pelo meu filho. O meu menino conquistou-o ao primeiro olhar e ele não resistiu a puxá-lo e mostrar-lhe o cão Cão. Como se nos conhecêssemos há anos e não tivéssemos acabado de chegar, exaustos de uma viagem demorada e sem fim. Lá o levou e mostrou-lhe os quadros bizarros que enchem a parede da casa de jantar, cheios de cor e formas transfiguradas.

Na minha história, o meu Luis inventado chega agora do Cercal e vê-me aqui sozinha na piscina enquanto tenho a familia a dormir a sesta lá dentro e vem sentar-se ao meu lado. «Atão vossemecê escreve é?» O sotaque dos dois Luises, o real e o inventando, é igualmente cerrado, alentejano da primeira à ultima letra. E eu explico-lhe que sim, que gosto de escrever e por aí vamos.

Há cinco anos que Luis decidiu começar este negócio do turismo rural. «A terra já não dá nada, o chaparral ardeu todo vai pra mais de 6 anos e eu andava aqui sozinho com o cão Cão sem saber que fazer da nossa vida. Nem sempre foi assim, sabe?»

Não me deixou espaço para nenhuma pergunta, nem interrogação passageira. Levantou-se e foi-se.

A irmã Rosa, de voz queimada pelos cigarros, mãos a esfregar os joelhos, apareceu-me vinda lá de baixo, a alongar-se nas sombras, porque aqui o calor aperta mesmo no início do Verão. Aproximou-se, puxou um banco para perto de mim, com gestos e cara de macho empedernido e começou a desembaraçar o fio daquelas vidas. A despachar para não perder tempo entre um e outro cigarro, sem me dar resposta a perguntas, nem sequer perceber que eu ali estava.

O meu irmão Luis vivia a terra. Não é só que vivia da terra, mas é que ele vivia mesmo esta terra. Quando voltou de Lisboa com aquela Eva pela mão - essa figura etérea e saltitante, que mal assentava os pés no chão -, vinha de sorriso rasgado, vaidoso de mostrar-lhe toda esta terra que o avô lhe deu. Vi logo que dali não vinha boa coisa. O meu irmão sorria e ela não condizia. Ele puxava-a para trás e para diante, mostrando tudo, as casas, os campos, as flores e os bichos e ela pairava sobre tudo como se nada sentisse.

Em Lisboa a conversa era outra porque ela vivia no meio de artistas, teatros, pinturas e poemas cantados e o meu irmão Luis quedou-se de amores pelos seus cabelos negros pesados, pelos seus olhos transparentes e cheios de nada. Trouxe-a para cá prometendo uma vida cheia e redonda, uma casa inteirinha para ela pintar os seus quadros berrantes e uma árvore que plantaram os dois no fim do pomar.

A Eva foi desaparecendo nos cinco anos que passaram cá. A árvore crescia, o meu irmão vivia num mundo que imaginara para os dois e não via a mulher a fugir-lhe entre o pó da estrada. Exactamente cinco anos depois do desterro de Eva, vinha o meu irmão mais uma vez carregado de terra e canseira, pronto para abraçar a sua mulher perdida em pensamentos no alto do monte, e nada encontrou. Nem é ninguém. A questão é que ele não encontrou mesmo nada, porque já há muito que a Eva tinha deixado de ser, para apenas estar presente nas nossas vidas, como personagem de um quadro qualquer. Esfumou-se sem sabermos como nem quando. Desapareceu desaparecida de vez e para sempre. Foram dias, meses e anos de espera, de procura e de desesperança.

O meu irmão Luis ainda pensa que um dia vai encontrá-la sentada à beira da árvore que plantaram, aquela ali do fundo está a ver?, aquela mirradinha e encolhidinha que nunca se fez cheia e redonda, nem nunca vai fazer. Mas ele ainda procura pela mulher desaparecida debaixo daquela sombra. A ela e áquela vida cheia que desenhou para si nos cinco anos que Eva durou. Dizem por aí que afinal ela morreu, mas foi. Que vinha doente e por isso sempre aquele ar ausente e cinzento. Mas o meu irmão diz que não. Que apenas se fartou de estar aqui plantada e se foi.

Ainda não sei o que aconteceu. Sei sim que o meu irmão ainda sorri quando acorda. E isso chega a esta nossa vida desterrada.

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