Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

domingo, 21 de agosto de 2011

Travessa das Acácias

Na janela da D. Laurinda via-se sempre a gata Clotilde, gorda, dengosa e bem repimpada, atenta a tudo o que se passava na Travessa. Lembro-me muito bem das tardes passadas no quintal da minha avó, dos banhos de mangueira e das caças às formigas e de ver sempre a Clotilde e sua respectiva Dona a mirarem-nos com ar de enfado.

A D. Laurinda já devia ter uns sessenta, sempre de carrapito e bata às florzinhas, às pintinhas, às risquinhas e outras inhas que se sucediam dia após dia, fizesse chuva ou sol. A minha avó cumprimentava-a sempre e ela atirava um «bom dia vizinha» com ar de quem não anda contente com a vida.

Naquelas duas semanas de Verão que sempre ficávamos na minha avó, era rara a noite em que eu não acordava com a choradeira da Clotilde. Das primeiras vezes foi desconcertante, fui acordar a minha avó e tudo, era capaz de jurar que estava um bebé a chorar no meio da Travessa. A minha avó lá me explicou que as gatas com o cio têm aquele miar pegajoso e arremelgado que me deixava às voltas na cama sem dormir.

Mas era preciso ter um azar! Não é que a Clotilde «ciava» sempre que eu lá dormia, ano após ano e, mais tarde comecei a reparar, sempre à mesma hora?

A Clotilde tinha um segredo. Não era bem a gata, verdade seja dita. Era a D. Laurinda. Ou melhor, a D. Laurinda e o Sr. Antunes lá da mercearia. Todos os dias quando a lua já ia alta e as estrelas piavam fininho, o Sr. Antunes deslizava para fora dos lençois da sua Sra, sempre ferrada com os quatro Valdispertes que a Doutora da farmácia lhe tinha dito que eram remédio santo para as noites menopausicas - e lá ia ele a passo desacelerado até à porta da D. Laurinda.

A porta abria-se e a Clotilde era posta cá fora. Assim mesmo, sem dó nem piedade, corrida para fora da sua almofada folhada a cetim, do seu sono de beleza e posta a ressacar à porta de casa, reduzida à sua condição de gata, de mero animal, e ali ficava a desunhar-se numa miadeira, chiadeira, remelgueira, até a sessão dos dois acabar.

Sessão? Sim, sessão. A D.Laurinda vestia os seus vestidos esplendorosos de espanhola, de pintas negras, bolas brancas, folhos rendados, tudo vermelho, vermelhão como cantava a outra, no gira-discos tocava uma sevilhanada que guardara dos seus tempos de recepcionista em Madrid - vai para mais de 30 anos, mas com uns elasticos e uns remendos tudo aquilo estava como novo, ou quase -  e dançava para o sr. Antunes, noite dentro. A gata gemia-se e o Sr. Antunes também. Gostava de ver o brilho daqueles vestidos, os pés da Laurinda a bateram ritmados, enfurecidos no chão de tijoleira, o cabelo prateado a roçar-lhe a cintura e o olhar transeado da vizinha.

Só quando acabava o LP a porta se abria para Clotilde entrar. Com o seu ar de desdem passava pelo Antunes sem lhe dirigir um miado sequer, enquanto ele beijava solenemente a mão da Laurinda em jeito de «até amanhã»..

Como tudo isto começou, não me perguntem, que eu não sei. Sei que agora são os meus filhos ainda tão pequenos que se queixam que cada vez que dormem na casa da bisa, na Travessa das Acácias, há uma choradeira a noite toda. Eu sorrio. Bem sei que a Clotilde nunca se conformorá. Mas ainda no outro dia entrei na mercearia do Sr. Antunes e tenho a certeza que ouvi uma sevilhanada a tocar baixinho. E o velho cantarolava a sorrir. 

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