Um desafio aos leitores!!

Já que umjeitomanso.blogspot.com me «anunciou» enquanto Contadora de Histórias, vamos lá pôr-me à prova! Quem se interessar, envie-me email (diazinhos@gmail.com) ou deixe comentário num dos textos, com uma palavra ou frase que me «inspire» para um próximo texto. A ver se pega e a ver se estou à altura..

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Histórias pedidas (umjeitomanso.blogspot.com): Leque perfumado

O pincel fininho, fininho viaja veloz entre as tintas espessas e as tabuínhas de madeira amarela. No leque apareciam flores, miosótis bem lilases, para se juntarem às libelinhas esverdeadas que pintara o ano passado na varanda sobre o mar. O pincel mergulhava determinado na água e Stela sorria a pensar que ainda há escassos minutos esse mesmo pincel fininho, fininho pintava as palpebras translúcidas desenhando com o pó a sombra do olhar.

Esperava mais um dos seus galãs, mais um dos muitos que lhe vinham enchendo o quarto e os anos que passavam rápido entre as temporadas Lisboa-Paris-Matosinhos. E Grasse. Essa terra perdida entre a montanha e o mar de Cannes, terra mãe dos mais finos perfumes e onde sempre se tentava a não voltar.

Sobre Grasse não escrevia, não comentava. Lá estava Guillaume, filho do marceneiro da vila, antigo criado da familia da mãe, antes de se mudarem para a Paris dos mil encantos. Era dez anos mais novo que Stela, totalmente inapropriado para a refinada senhora da sociedade em que se tornara, culta, vivida e leviana, mas que a levava a perder-se naqueles olhos castanhos e ensolarados.

Fora Guillaume quem lhe oferecera o leque, após a sua primeira visita a Grasse. Leque que ela agora enchia com bocadinhos da vida que levava, que queria sempre encher mais e mais para não lembrar a vida que não tinha em Grasse.

Stela cresceu a ouvir a ladaínha da mãe, qual terço continuamente rezado. Ela ali desterrada neste petit país de merde, onde não se passa rien, nem as festas que o pai de Stela prometera, nem os eruditos serões, nem os espectáculos, nem a Ópera, nem nada. Rien de rien! E ela ali, filha da mais pura aristocracia francesa, a perder os seus merveilleux anos de vida, na triste Lisbonne, na merde de Mattosinhos! La vie que lhe passava ao largo e ela a desfazer-se, vítima das vãs promessas. Nem a filha Stela podia lá ser Stella, era uma infime Estela, nome que lhe soava a criadagem e pequenez.

Stela crescera então a sonhar uma vida maior para si, a querer sempre mais e tudo o que não tinha. E de alguma forma ser lembrada para sempre, na sociedade, no amor, no mundo! Portugal não lhe chegava, Guillaume não lhe chegava. Queria a perfeição para si. Nada menos que isso seria aceitável. E conheceu muito, viajou muito, privou com poetas, proseiros e pintores. Músicos e políticos. Chegou a ser íntima de princesas e prima-donas. Mais íntima ainda dos respectivos.. Mas as promessas que a levavam à intimidade perfeita, desfaziam-se nos meandros da clandestinidade.

Na ânsia de viver uma vida cheia, só o vazio lhe ficou. Na ânsia de viver tudo e sempre mais, perdera os filhos que não teve, os quadros que não pintou, o amor que não amou.

Velha e enrugada, recostada no sofá, foi antes do último Ai que olhou para o leque amarelo das tantas vidas prometidas e percebeu que nada lhe ficara. Só as recordações do que não fora, do que nunca chegara a ser. E o cheiro da madeira perfumada de Grasse que a castigava a cada momento da sua velhice.

Hoje, quase 200 anos depois do dia em que Guillaume lhe deixara o leque no travesseiro, Estela sorriria ao saber que afinal ainda se conta a sua história. Que alguém que pega com gentileza no leque amarelo conta ainda a história de uma Stela grande de mais para a vida que viveu.

1 comentário:

  1. Perfeito, Caríssima. Que bela história. Quase poderia ser feito um guião a partir desta personagem.

    Parabéns.

    ResponderEliminar